Archive for the ‘Poesia Portuguesa’ Category

Campos e o grande mito do progresso industrial

Monday, January 14th, 2019

 

 

 

Vejo Campos de visita a Paris ou a uma qualquer grande capital, – Nova Iorque, Londres, Berlim – sem talvez nunca ter deixado o Chiado; vejo mesmo Campos de visita a Paris.

Toma um café à mesa com Céline, Walser, Pound… O grande relógio toca ao longe, enquanto os estrangeiros todos bebem cervejas frecas e levam uma vez mais o cigarro à boca.

O tempo passou, é aquela estação outra vez, os pássaros voltam. Mas o homem dá um passo sobre a terra e depois dá outro e depois outro, depois outro, outro.

 

revoluções aqui, ali, acolá

 

Ó engrenagens, o ruído eterno – hei-de deixar que aquela fúria vos alcance –

 

E afinal têm alma lá dentro ?

 

 

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!, Ah! Como eu irei alegremente morrer às gargalhadas!

 

E um parlamento tão belo como uma borboleta

 

Sim, o Caeiro, o das estações, leu Diógenes, o cínico, e foi até à montanha com os cães

 

 

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

 

 

 

 

Eia! eia! eia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Verão estava a acabar

Sunday, December 16th, 2018

 

 

Mensageiro da promessa
extraviada, os olhos
do mais indeciso azul
que conheci. Alguma vez
hei-de traçar por extenso
a curva do descaminho.

 

Foi talvez aquele beijo
a meia praça ou o acaso
de fumares tabaco negro.
Por dentro das ruas
quietas, o eco de uma voz
que mal se ouvia:

 

estamos todos tão sós
em toda a parte

 

e é quase dia.

 

 

 

Aberto ao acaso: Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras [trad. de Manuel Seabra], Arcádia, Lisboa, s/d, p. 126.

 

 

Oráculos de Cabeceira, Rui Pires Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Vento

Thursday, November 29th, 2018

 

 

 

Porque não há nada em vez de tudo? – perguntou
o cientista. – Tudo me cansa:
a tentativa, o esforço, o consegui-lo.
Tudo é redondamente inútil:
o desejo, o seu decesso.
O confronto de ideias então
apavora-me. Até mesmo a ideia de
começar a falar,
a indústria de se ganhar algo, o movimento
são desgastantes antes de si.
Tudo é absolutamente a mesma coisa.
Nada conquista nada.
O vento é.

 

 

Daniel Jonas

 

 

 

 

 

 

Contrariedades

Wednesday, September 26th, 2018

 

 

 

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas…

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos…

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia…
Que mundo! Coitadinha!

 

 

 

Cesário Verde

 

 

 

 

 

Humilhações

Thursday, July 26th, 2018

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia
De vê-la aproximar, sentado na platéia,
De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.

Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?…

 

 

 

 

Cesário Verde

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poemas Quotidianos

Wednesday, February 21st, 2018

 

 

 

 

Deu meia-noite
és livre
os guardas olham as montras

vêem o preço dos coturnos
e dos lenços

não mais se lembrarão de ti

só se o luar nascer
ou a manhã

ou se gritares

 

 

 

 

 

O teu convite
ainda me sabe a incesto

ainda o sinto a furar-me as axilas
a fazer-me rir
e chorar

 

 

 

 

 

O livro
chama verdes
aos teus olhos cor de cinza

não regista
sinais particulares
e todo o teu corpo
se decompõe
tão novo

 

 

 

 

 

O teu hábito
e o meu desejo
não se entendiam

ficando para ti sempre um mistério
o regresso do meu sangue ao coração
o arrefecimento brusco
e a retirada

Estes poemas
começavam
a ser vividos

 

 

 

 

 

Fujo da memória

Oiço os teus conselhos
se piso o chão descalço
(era adolescente)

Oiço pedir água
troco

E o teu ventre
pulido
de novo me arrepia

 

 

 

 

 

Que foi feito de nós
Ah Clara nada invejes

todos mais ou menos
ficamos tolerados
e aguardando

receando como tu
o desemprego e a velhice

vendo
crescer
os nossos filhos sem sorrir

 

 

 

 

 

Na cómoda
ainda os mesmos solitários
de nervuras

ainda o teu retrato de menina
desfocado

ainda as flores de papel
com água
e o rosário

o mesmo espelho
o mesmo jarro

o mesmo luar grisalho
empoando o frio azul

Só tu mudaste Clara

 

 

 

 

 

Poemas quotidianos

como o sol
como a noite

como a vontade de comer
e o sono

como as preocupações
e o amor

e porque saio à rua
e trabalho
diariamente

 

 

 

 

 

Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz torna mais belo
e mais útil
cada objecto

 

 

 

 

 

 

Na cidade onde envelheço
não há brisa
há vento

A brisa é para o amor
e para os cabelos

Na cidade onde envelheço
a roupa tem de secar
durante a noite

os operários levantam-se cedo

e o seu amor é simples
e no trabalho

 

 

 

 

 

 

Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivota
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

 

 

 

 

 

 

Aos domingos
aos domingos o golo no estádio
chega até minha casa
e até ao mar

O próprio sol
é uma imagem de couro no espaço

a chuva
uma imagem de redes batidas

Ah Que fazer
senão esperar pela semana

dormindo

 

 

 

 

 

Gosto do rio
Assim gostasse das casas reflectidas
(úmidas)

prado verde
na cidade ensombrada
nele se lava os pés
dá peixe
e leva as lágrimas

 

 

 

 

 

Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés

caindo sobre as estátuas
e a nostalgia

chega a ser morna

com fumo e álcool
na garganta

Até os homens
passarem junto aos vidros

Reais Molhados

Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações

grisalhos
sem serem velhos

e falando sós
sem serem loucos

 

 

 

 

 

Hei-de entrar nas casas
também

Como o silêncio

A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino

A ver os monogramas bordados nos lençóis

os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas

E a caderneta dos Socorros Mútuos
e Fúnebres

em atraso

 

 

 

 

 

Não fumo apenas
ao ver passar os homens pelos
passeios

Não fumo mesmo

Há uma ternura
que encontro e que possuo
perdida amargamente
por não nos olharmos
sequer

 

 

 

 

 

Hei-de entrar nas casas
também
como o luar

A ver as faltas de roupa interior
e de cama

os rostos preocupados
com os avisos de luz e da água

com a máquina de petróleo apagada
jornais nas paredes
e um pássaro na varanda
a cantar
ao lado duma flor

 

 

 

 

 

Já deitado
e pensando no escuro amigos
há um poema de café que quero
escrever ainda

o poema do maço de cigarros
aberto sobre a mesa
e à-descrição

 

 

 

 

 

 

 

 

António Reis

 

Novos Poemas Quotidianos

Friday, November 17th, 2017

 

 

 

É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

 

 

 

 

 

António Reis