Poemas Quotidianos

 

 

 

 

Deu meia-noite
és livre
os guardas olham as montras

vêem o preço dos coturnos
e dos lenços

não mais se lembrarão de ti

só se o luar nascer
ou a manhã

ou se gritares

 

 

 

 

 

O teu convite
ainda me sabe a incesto

ainda o sinto a furar-me as axilas
a fazer-me rir
e chorar

 

 

 

 

 

O livro
chama verdes
aos teus olhos cor de cinza

não regista
sinais particulares
e todo o teu corpo
se decompõe
tão novo

 

 

 

 

 

O teu hábito
e o meu desejo
não se entendiam

ficando para ti sempre um mistério
o regresso do meu sangue ao coração
o arrefecimento brusco
e a retirada

Estes poemas
começavam
a ser vividos

 

 

 

 

 

Fujo da memória

Oiço os teus conselhos
se piso o chão descalço
(era adolescente)

Oiço pedir água
troco

E o teu ventre
pulido
de novo me arrepia

 

 

 

 

 

Que foi feito de nós
Ah Clara nada invejes

todos mais ou menos
ficamos tolerados
e aguardando

receando como tu
o desemprego e a velhice

vendo
crescer
os nossos filhos sem sorrir

 

 

 

 

 

Na cómoda
ainda os mesmos solitários
de nervuras

ainda o teu retrato de menina
desfocado

ainda as flores de papel
com água
e o rosário

o mesmo espelho
o mesmo jarro

o mesmo luar grisalho
empoando o frio azul

Só tu mudaste Clara

 

 

 

 

 

Poemas quotidianos

como o sol
como a noite

como a vontade de comer
e o sono

como as preocupações
e o amor

e porque saio à rua
e trabalho
diariamente

 

 

 

 

 

Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz torna mais belo
e mais útil
cada objecto

 

 

 

 

 

 

Na cidade onde envelheço
não há brisa
há vento

A brisa é para o amor
e para os cabelos

Na cidade onde envelheço
a roupa tem de secar
durante a noite

os operários levantam-se cedo

e o seu amor é simples
e no trabalho

 

 

 

 

 

 

Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivota
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

 

 

 

 

 

 

Aos domingos
aos domingos o golo no estádio
chega até minha casa
e até ao mar

O próprio sol
é uma imagem de couro no espaço

a chuva
uma imagem de redes batidas

Ah Que fazer
senão esperar pela semana

dormindo

 

 

 

 

 

Gosto do rio
Assim gostasse das casas reflectidas
(úmidas)

prado verde
na cidade ensombrada
nele se lava os pés
dá peixe
e leva as lágrimas

 

 

 

 

 

Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés

caindo sobre as estátuas
e a nostalgia

chega a ser morna

com fumo e álcool
na garganta

Até os homens
passarem junto aos vidros

Reais Molhados

Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações

grisalhos
sem serem velhos

e falando sós
sem serem loucos

 

 

 

 

 

Hei-de entrar nas casas
também

Como o silêncio

A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino

A ver os monogramas bordados nos lençóis

os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas

E a caderneta dos Socorros Mútuos
e Fúnebres

em atraso

 

 

 

 

 

Não fumo apenas
ao ver passar os homens pelos
passeios

Não fumo mesmo

Há uma ternura
que encontro e que possuo
perdida amargamente
por não nos olharmos
sequer

 

 

 

 

 

Hei-de entrar nas casas
também
como o luar

A ver as faltas de roupa interior
e de cama

os rostos preocupados
com os avisos de luz e da água

com a máquina de petróleo apagada
jornais nas paredes
e um pássaro na varanda
a cantar
ao lado duma flor

 

 

 

 

 

Já deitado
e pensando no escuro amigos
há um poema de café que quero
escrever ainda

o poema do maço de cigarros
aberto sobre a mesa
e à-descrição

 

 

 

 

 

 

 

 

António Reis

 

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