Poemas Quotidianos
Wednesday, February 21st, 2018
Deu meia-noite
és livre
os guardas olham as montras
vêem o preço dos coturnos
e dos lenços
não mais se lembrarão de ti
só se o luar nascer
ou a manhã
ou se gritares
O teu convite
ainda me sabe a incesto
ainda o sinto a furar-me as axilas
a fazer-me rir
e chorar
O livro
chama verdes
aos teus olhos cor de cinza
não regista
sinais particulares
e todo o teu corpo
se decompõe
tão novo
O teu hábito
e o meu desejo
não se entendiam
ficando para ti sempre um mistério
o regresso do meu sangue ao coração
o arrefecimento brusco
e a retirada
Estes poemas
começavam
a ser vividos
Fujo da memória
Oiço os teus conselhos
se piso o chão descalço
(era adolescente)
Oiço pedir água
troco
E o teu ventre
pulido
de novo me arrepia
Que foi feito de nós
Ah Clara nada invejes
todos mais ou menos
ficamos tolerados
e aguardando
receando como tu
o desemprego e a velhice
vendo
crescer
os nossos filhos sem sorrir
Na cómoda
ainda os mesmos solitários
de nervuras
ainda o teu retrato de menina
desfocado
ainda as flores de papel
com água
e o rosário
o mesmo espelho
o mesmo jarro
o mesmo luar grisalho
empoando o frio azul
Só tu mudaste Clara
Poemas quotidianos
como o sol
como a noite
como a vontade de comer
e o sono
como as preocupações
e o amor
e porque saio à rua
e trabalho
diariamente
Depois das 7
as montras são mais íntimas
A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa
E a luz torna mais belo
e mais útil
cada objecto
Na cidade onde envelheço
não há brisa
há vento
A brisa é para o amor
e para os cabelos
Na cidade onde envelheço
a roupa tem de secar
durante a noite
os operários levantam-se cedo
e o seu amor é simples
e no trabalho
Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco
(a água é sempre azul
e sempre fresca)
Em que país encontraria
um emprego e esquecimento
em que país encontraria
amor e compreensão
Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte
Não respondem as gaivota
porque voam
Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco
Aos domingos
aos domingos o golo no estádio
chega até minha casa
e até ao mar
O próprio sol
é uma imagem de couro no espaço
a chuva
uma imagem de redes batidas
Ah Que fazer
senão esperar pela semana
dormindo
Gosto do rio
Assim gostasse das casas reflectidas
(úmidas)
prado verde
na cidade ensombrada
nele se lava os pés
dá peixe
e leva as lágrimas
Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés
caindo sobre as estátuas
e a nostalgia
chega a ser morna
com fumo e álcool
na garganta
Até os homens
passarem junto aos vidros
Reais Molhados
Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações
grisalhos
sem serem velhos
e falando sós
sem serem loucos
Hei-de entrar nas casas
também
Como o silêncio
A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino
A ver os monogramas bordados nos lençóis
os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas
E a caderneta dos Socorros Mútuos
e Fúnebres
em atraso
Não fumo apenas
ao ver passar os homens pelos
passeios
Não fumo mesmo
Há uma ternura
que encontro e que possuo
perdida amargamente
por não nos olharmos
sequer
Hei-de entrar nas casas
também
como o luar
A ver as faltas de roupa interior
e de cama
os rostos preocupados
com os avisos de luz e da água
com a máquina de petróleo apagada
jornais nas paredes
e um pássaro na varanda
a cantar
ao lado duma flor
Já deitado
e pensando no escuro amigos
há um poema de café que quero
escrever ainda
o poema do maço de cigarros
aberto sobre a mesa
e à-descrição
António Reis