Archive for the ‘Literatura’ Category

Campos e o grande mito do progresso industrial

Monday, January 14th, 2019

 

 

 

Vejo Campos de visita a Paris ou a uma qualquer grande capital, – Nova Iorque, Londres, Berlim – sem talvez nunca ter deixado o Chiado; vejo mesmo Campos de visita a Paris.

Toma um café à mesa com Céline, Walser, Pound… O grande relógio toca ao longe, enquanto os estrangeiros todos bebem cervejas frecas e levam uma vez mais o cigarro à boca.

O tempo passou, é aquela estação outra vez, os pássaros voltam. Mas o homem dá um passo sobre a terra e depois dá outro e depois outro, depois outro, outro.

 

revoluções aqui, ali, acolá

 

Ó engrenagens, o ruído eterno – hei-de deixar que aquela fúria vos alcance –

 

E afinal têm alma lá dentro ?

 

 

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!, Ah! Como eu irei alegremente morrer às gargalhadas!

 

E um parlamento tão belo como uma borboleta

 

Sim, o Caeiro, o das estações, leu Diógenes, o cínico, e foi até à montanha com os cães

 

 

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

 

 

 

 

Eia! eia! eia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tuesday, November 27th, 2018

(ou, transigindo,

de que lado

passarás a morrer, a clarear)?

 

 

 

 

resiste à anunciação da tua morte, ao tempo devolvido, aos muros brancos com a sombra das oliveiras desenhada, resiste ao portão que abre para jarras de vidro lascado, onde a água apodrece, e para flores pisadas entre túmulos, resiste com a tua mudez a todas as perguntas, a todos os inquéritos, resiste à beleza que só prolonga um equívoco, ao que não interrompe, resiste ao cuspo, o suor, a merda, a flacidez, as rugas, resiste à eternidade dos que estão sempre a esconder-te atrás das marcas de deus, da humanidade, do próximo, esse substantivo abstracto, e ri dos dejectos que a eternidade vai largando: as moscas e os besouros encarregar-se-ão deles, e depois o pó no que há-de restar, mas a merda continua merda, não se transfigura, a merda resiste, nos palhaços que mastigam uma boca vazia, explode, isto é, cada pedaço do teu corpo incendeia, isso torna-te invulnerável, ninguém te dará nada nem te perguntará nada. porque não percebem, afinal o fogo são muitos caminhos, alguns o rasto de um escorpião numa duna, outros o contínuo remexer das gaivotas na estrumeira, outros ainda, um riso estridente. O medo é um cerco de vespas, que zumbem em lugares inesperados, ou um lobo que nunca abandona, hoje há coisas simples nos subúrbios das grandes cidades: a carcaça de autocarros calcinados, um homem barricado num café, uma criança afogada na piscina: eis os dejectos da eternidade, nos hemiciclos homens cheios de certezas falam e comem o que falam, vomitam e comem o que vomitam. De madrugada, os camiões levam o lixo. São grandes lixeiras estas palavras: paneleiro, paneleiro. Resiste. Não transfigures, não emendes com frases as palavras que doem, elas reconhecerão sempre o alvo.

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Portugueses, riso, portuguesas, riso, a conclusão do programa de ajustamento, riso, foi feita, riso, com sucesso, riso, o objectivo fulcral, riso, do ano, riso, o orçamento do estado é, riso, um instrumento, riso, um instrumento de merda, riso, o meu instrumento, riso, o de todos nós, riso, o acesso aos mercados, riso, abre e fecha a boca, riso, a bandeira atrás, riso, a primeira dama, riso, com hífen ou sem hífen, riso, a boca que se abre e fecha, riso, abre-se e fecha-se um grande silêncio, riso, escurece o ecrã, riso, desaparece o homem, riso, reaparece o homem, riso, a mulher atrás, riso, e ele à frente, riso, atravessam uma sala, riso, a, riso, traves, riso, sam, riso, u, riso, m, riso, a, riso, s, riso, a, riso, l, riso, a, riso, cá vivo e sam sou, este bolo está bom.
– choco. És um choco podre.

 

Os miúdos gritam de longe:
– paneleiro, paneleiro.
O seu afastamento sufoca. O sol bate-te nas costas. O suor escorre como uma raiz a crescer. Ramifica-se. A touca vermelha na cabeça: atravessa-a uma lista branca.

 

A história acabou ali. O resto é só um caminho para o príncipio: a tua morte. Ou mais longe ainda: uma cidade que irias percorrer, que o teu olhar esvaziava de outro olhar. E por todo o lado quem sempre te vira, via-te. Atrás das janelas, por entre as cortinas, ou sentados nas tabernas, ou: não o conheço, ou: boa noite Tonito, ou mudavam de passeio, ou o riso dos pescadores que consertavam as redes: olha o gajo à procura de homem, aquela vergonha, antes ladrão que paneleiro. Há tantos anos. Ou desde sempre. Um lugar cercado: seria o teu. Um lugar aguarda o homem que lhe dará o cerco. A mágoa. A mácula. A mancha. Não a mancha: o borrão.
Paneleiro, paneleiro.

 

O eco: voz que saiu da voz. E assim. Ninguém.

 

 

 

 

Rui Nunes

(ou, transigindo,
de que lado
passarás a morrer, a clarear)?

Língua Morta, 2014

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Saturday, October 27th, 2018

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

18 de Março – 1900

 

Faz hoje anos que morreu António Nobre. Foi uma figura inconfundível de poeta. Por mim nunca encontrei também rapaz mais lindo. Um pouco afectado talvez… Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus versos no jardim solitário do Palácio, e pedia, com os olhos límpidos e sôfregos, uma Bíblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão… Estou a vê-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela janela da casa à beira rio, de Matosinhos, onde Alberto d’Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto d’Oliveira, esperto e tão dominador, que, quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo… António Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdém. Fugiam dele antes de publicar o ; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o . Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para cônsul quiseram reprová-lo: foi preciso que Alberto d’Oliveira explicasse ao júri quem era o poeta António Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e até os seus amigos mais íntimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha vivido — só. Até Alberto d’Oliveira teve de interromper uma amizade de irmão quando se encontrou diante deste dilema: ou deixar-se dominar por ele, que o tratava como uma criança, ou feri-lo em pleno coração: — A nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou três pontos à craveira. Ou mantê-la ou quebrá-la. — Quebrou-a. O ilustre escritor possui desse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de António Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só ele pode e deve escrever.

 

Digamo-lo, digamo-lo… No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe puderam perdoar a impertinência, o desdém, o génio. Era um ser diferente. Não agradava a ninguém. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida prática. Tinha a consciência do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar. Estávamos todos mortos por nos desfazermos desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo — que nos ficou na alma …

 

Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdém infantil de António Nobre.

 

Foi para a cova completar trinta e três anos num dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um príncipe e adorável como uma criança. Quantos estavam ali à beira do túmulo? Meia dúzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu — e quem mais? quantos mais? Os jornais deram a sua morte em duas rápidas linhas. Respirou-se.

 

Hoje é um dos poetas portugueses com mais admiradores. É um poeta de simpatia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida prática. Ao contrário, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si próprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes, árvores, estrelas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu de uma forma tão sua o universo. Que universo dirás? O meu? o teu?… Não, o que ele descobriu, cismando como um navegador, à proa do seu barco… Por isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no sepulcro.

 

 

 

 

Raúl Brandão

Memórias

 

 

 

 

 

 

 

em minúsculas

Friday, September 21st, 2018

Um olhar não muito distante

Albert Cossery

Wednesday, January 17th, 2018

Wednesday, December 27th, 2017

 

 

 

 

 

O SONHO EM MARCHA

 

 

 

 

20 de janeiro

 

Eu sou um desconhecido para mim mesmo. Ia para a cova sem me ter encontrado um momento sós a sós comigo. E é com dor, é com espanto e dôr, que me reconheço; é com olhos de pasmo e dor…

Tudo mudou. A sofreguidão que todos os dias da vida — sempre! sempre! — nos empurra e leva; o sentimento da vida efémera e o horror da morte — mais perto! cada vez mais perto! —; esta coisa imponderável que debalde tento deter — sem nome e a que se chama o tempo — que nos usa, a que não ouço os passos e que caminha inalterável — tudo desapareceu de vez. Respiro. E, modificada a ideia do tempo, todas as outras se alteraram profundamente. Os sentimentos não são os mesmos. A vida assenta noutras bases, a vida fica amarga.

Resta-nos a lógica e a consciência. Mas a consciência admito-a, contanto que não me embarace. A consciência que quiseres, contanto que não me amesquinhe, ou não me iluda. O único juiz sou eu. O fim da minha vida não é dominar-me, é dominar-te.

Todos temos de matar, todos temos de destruir, todos temos de deitar abaixo.

 

 

 

Raúl Brandão

Húmus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Monday, March 27th, 2017

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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