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Jaime

Sunday, April 1st, 2018

entrevista de João César Monteiro

 

 

 

JAIME DE ANTÓNIO REIS – O INESPERADO NO CINEMA PORTUGUÊS

 

J.C.M – Não te pergunto já quando começaste a interessar-te por cinema, mas quando pudeste começar a trabalhar no cinema?

A.R. – Começámos, no Cineclube do Porto, investigando um pouco a teoria do cinema e tentando, com a ajuda de alguns amigos, fundar a secção de cinema experimental, embora o cinema já anteriormente, me interessasse, como forma de expressão estética.

J.C.M. – E, na prática, esse empenho, digamos assim, viria a traduzir-se concretamente em quê?

A.R. – Limitámo-nos a arranjar uma câmara de 16 mm, a planificar colectivamente um determinado assunto, a ensaiar os primeiros passos na execução de um filme, mas sem responsabilidade perante ninguém, a não ser perante um espírito de grupo de trabalho. Estávamos desprotegidos. Não tínhamos incentivo nenhum. Nada. No entanto, foi uma experiência que considero decisiva.

J.C.M. – Chegaram a concluir algum filme?

A.R. – Depois de uma acção de grupo, acabou por se concretizar no Auto de Floripes. Fez-se um trabalho de recolha na região de Barroselas (Viana do Castelo).

J.C.M. – Como é que o trabalho de grupo era organizado?

A.R. – Tínhamos, como material de base, o texto do Auto, que havia sido publicado, na revista Vértice. A partir daí, fizemos uma adaptação do texto, em função do que nos parecia essencial para o seu aproveitamento cinematográfico, sem alienar o carácter da sua expressão teatral, por lado e, por outro, levando em linha de conta que a filmagem ficaria sujeita à contingência de o Auto se representar uma só vez, pela última vez, o que excluía toda e qualquer hipótese de repetição de planos. Isso implicou que a equipa fizesse algumas deslocações, a fim de se proceder a um minucioso reconhecimento geográfico da zona. Chegámos, por exemplo, a tirar medidas no terreno e a estudar o problema da colocação das câmaras de filmar, visando, um pouco como na televisão, a obtenção de uma multiplicidade de tomadas de vista e, efectivamente, trabalhámos com quatro câmaras.
Depois desses «raids» de reconhecimento, reestruturávamos todo o trabalho previamente elaborado e, um belo dia, fez-se o Auto de Floripes. A equipa partiu de véspera para Viana, tomaram-se posições estratégicas, usando duas câmaras fixas para os planos gerais e duas câmaras móveis, ao nível do estrado do palco, para não incomodar o público que assistia à representação, e para seguir os actores que se iam deslocando, o que pressupunha um conhecimento prévio do Auto e do espaço cénico e, portanto, uma montagem «a priori» que, todavia, acabou por não ser a montagem final do filme mas, de qualquer modo, era uma espécie de montagem de referência.

Não houve propriamente um criador, houve, sim um verdadeiro trabalho de equipa, com maior ou menor participação de cada um. Como te disse, foi uma experiência decisiva e bastante importante, embora, hoje em dia, não possa avaliar o resultado estético do filme. Todavia, como espírito de amor ao trabalho, como sacrifício e desinteresse de toda a gente, foi inesquecível. Foram noites e noites. Os rapazes saíam dos empregos, de actividades profissionais muito duras, e concentravam-se, até altas horas naquele trabalho. Talvez isso hoje faça rir um cineasta profissional, ou até os cineastas de Lisboa, mas eu creio que tudo se começa assim a sério na vida.

J.C.M. – Eu não sou de Lisboa e, por isso, desculpa a minha insistência, mas gostaria que detalhasses um pouco mais o que foi o vosso trabalho de reconhecimento geográfico, no que toca ao Auto de Floripes.

A.R. – Da mesma forma que nós, hoje, fazemos um trabalho de ambiências de luz, de campos focais, por exemplo, sabíamos que o tempo de representação teatral constituía um grande entrave para o tempo da «découpage» cinematográfica, sabíamos também que o Auto tinha pontos quentes, pontos fulcrais, tanto do ponto de vista teatral, como do ponto de vista de uma eventual transposição cinematográfica isenta, quanto possível, de quaisquer ambiguidades de linguagem. Isso pôs-nos quase a obrigatoriedade apriorística de não perder aquela peça de caça que era vital. Aqueles grandes movimentos coreográficos, aqueles meios planos de actores ou conjuntos de actores a considerar, já não eram, em determinados momentos, teatrais, mas cinematográficos. Nós não éramos ingénuos, já íamos a contar com um ror de problemas e, por isso o reconhecimento que fizemos foi de uma extrema utilidade. Contactámos, de igual modo, com as figuras que iam representar o Auto vimo-las no seu quotidiano. Uma era alfaiate, outra agricultor… É claro que o filme teve uma recolha muito elementar de aspectos etnográficos, podemos rir-nos com uma certa bonomia, mas isso é secundário.

J.C.M. – De qualquer forma, essa experiência deve ter sido de grande utilidade para a tua colaboração no Acto da Primavera do Manuel de Oliveira.

A.R. – Em certa medida. Algum tempo depois do nosso trabalho, na secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, o Oliveira convidou-me para seu assistente. Fiquei um bocado espantado, mas lá fui trabalhar com ele. Contudo, sou mais tributário, aprendi mais vendo cinema e artes plásticas, do que propriamente com esse trabalho, ressalvado todo o respeito que me merece. As artes plásticas, a própria música, a própria poesia, é que me foram fundamentais. O cinema é uma arte que toca as outras artes, sem que seja uma soma delas. Há, no entanto, implicações muito grandes, e acaba por se adquirir um espírito cinematográfico que, depois, se torna independente, mas que, de facto, se apreende no comércio com as outras artes.

 

FALAM COM GRANDE GRAVIDADE E APENAS O ESTRITAMENTE NECESSÁRIO

 

J.C.M. – Os diálogos que escreveste para o Mudar de Vida do Paulo Rocha também são resultantes de uma investigação prévia?

A.R. – Nesse caso, a natureza dos diálogos deve-se primeiro, a um espírito muito conciso que tenho na poesia: o seu aspecto descarnado é também peculiar à região dos vareiros da Aforada, que eu conhecia. Havia uma certa afinidade com a maneira de falar da região porque eles falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário. Para além disso, o Paulo Rocha ia tratar um tema que eu estudara na adolescência, e isso foi determinante. Praticamente, vi sempre o diálogo na boca das pessoas. Por isso, tem muitos silêncios, muitos staccatos, uma pontuação cinematográfica. Na verdade, julgo que criei um diálogo para cinema. Com esta sorte também: é que, na expressão poética eu era muito económico e conhecedor dos vícios em que se incorreu ao utilizar o diálogo como suporte de muitos filmes e estava, por assim dizer, alertado contra esse tipo de perigos. Escrevi, porém, os diálogos com grande espontaneidade, quase sem ter tido necessidade de os retocar. Foi como se tivesse reconhecido uma disciplina, absorvido essa disciplina e sido capaz de escrever sem que ela me coarctasse. Respeitei, inclusive, o tempo que uma imagem iria ter, o espaço que envolveria, etc. Intuitivamente. Mas, por estranho que pareça, via o filme do Paulo. Com certeza, o filme que via nada tinha que ver com o filme que vi, mas esse trabalho deu-me uma grande disciplina visual.

J.C.M. – Houve algum trabalho de pesquisa de vocábulos e expressões de raiz popular?

A.R. – Não. Na Torreira não houve, mas não há diferenças de dialecto entre os habitantes da Aforada, que vieram de toda esta corda atlântica, e os da Torreira, onde o filme do Paulo se passa. Haverá, evidentemente, diferenças íntimas, mas não são do mesmo tipo que as que há, por exemplo, entre um transmontano e um alentejano. São mais do que primos; são coirmãos. E havendo, contudo, certas diferenças no campo dos instrumentos técnicos, por exemplo – não posso avaliar bem – há uma grande afinidade vocabular. E há a presença do mar. São os mesmos gestos largos, a mesma violência da vida, a mesma contingência, o mesmo furor na paixão. Quando o Paulo me falou, aceitei redigir o diálogo, porque ia falar de uma coisa que tinha vivido, nesse período disponível do sonho que a adolescência é. Andei com os vareiros durante muitos anos, no mar, nas bateiras, nas traineiras, e isso deu-me uma experiência muito fecunda. Falava como eles. Ainda hoje sou capaz de lhes imitar a fala e, sobre eles, escrevi um livro que nunca publiquei e suponho que está destruído. Foi uma grande lição para mim. Se o Paulo me tivesse pedido o diálogo de um filme passado em Lisboa, certamente eu não lho faria. Nessa altura, pelo menos. Havia uma realidade humana fundamental e, na medida em que a linguística nos trouxe, hoje em dia, uma tão grande responsabilidade acho que, mais do que nunca, é preciso ser-se profundamente sério na adesão a um diálogo. Não só por respeito pela linguística como por respeito pelo cinema. Tem-se sido profundamente gratuito nisso. Eu próprio gostaria de voltar a repensar todo o diálogo que escrevi, em função do filme. Gostaria de aprender com os erros que cometi.

 

ESTÁ LÁ O MESMO «QUE», O MESMO «SE», MAS…

 

J.C.M. – O que é que pensas do português que se fala no Acto da Primavera?

A.R. – Penso que não é o português de Trás-os-Montes. Tenho uma certa dificuldade em explicar isso, mas é uma espécie de… e, de preferência, gostaria de fazer uma verificação prática. É uma pergunta a que te poderia responder se revisse o filme, se relesse o texto, mas a impressão que tenho é que, embora representado pelo povo – o que não quer dizer nada – é uma representação de coisas que não são populares. Possui uma carga erudita ou pseudo-erudita, uma carga paroquiana e literária que, na dicção, sofre uma transposição em tudo semelhante à que sofre um quadro erudito tratado por um pintor popular, mas aqueles homens não falam o transmontano que, a mim, me interessa. Nem o arcaico, nem o actual. Claro que está lá o mesmo «que», o mesmo «se», estão lá tiradas que o povo dirá hoje quotidianamente, mas…
De resto, basta fazer um contraponto entre o que o texto tem e a maneira como eles falam, e a grande tradição da poesia oral ou escrita da Idade Média, por exemplo, para saber onde está a contrafacção evidente. Terá algumas coisas autênticas, mas não é um castanheiro, nem Terra Alta, nem Terra Baixa. O que estou a dizer é um bocado polémico e talvez faça sorrir, mas presumo que comprovava com segurança o que estou a dizer, se me desafiassem a prová-lo. Isto é um bocadinho improvisado, mas creio que não terá sido por má vontade que o Rodrigues Miguéis atacou o texto, até porque não era questão disso. O Manuel de Oliveira foi profundamente honesto no que fez e lutou muito para poder fazer o filme, como todos nós lutamos por qualquer coisa a sério, mas o texto talvez nos não mereça um respeito por aí além. Nem pelo facto de ser representado pelo povo nem por se integrar numa tradição que se vai mantendo, mais ou menos pseudomisticamente, como uma espécie de quisto cravado na província.

J.C.M. – Pois, mas não há dúvida que a influência da Igreja nos meios rurais é avassaladora.

A.R. – Isso é nítido, mas se quisermos ir a raízes muito mais fundas, estou convencido que a influência que tem em Trás-os-Montes é, como em qualquer outra parte, episódica. Doa a quem doer.

J.C.M. – Não achas, porém, que o carácter impositivo de uma dada linguagem pode ser subvertido pelo simples facto de a sua representação fonética, gestual, etc. se produzir, ainda que em moldes repressivos, no contexto de uma classe para a qual não era, de início, destinado?

A.R. – Eu diria até que eles vão muitíssimo longe, pronunciando e dizendo aquele texto. De resto, para os que não representavam habitualmente o Auto e que o Oliveira seleccionou para os principais papéis (é, por exemplo, o caso do Nicolau que fazia, no filme, o papel de Cristo) a rodagem foi uma aprendizagem extremamente árdua. Assisti ao esforço dos actores e ao esforço do realizador a exigir-lhes a modelação, a expressão fonética, etc. É obvio que, não obstante esse trabalho sobre os actores, o acento local subsistiu quanto a pronúncia, mas não quanto a construção linguística e atávica.

J.C.M. – Todavia, o plano em que a mãe do Cristo canta, com todo o peso litúrgico da ladainha, aquele canto espantoso «ai dolor», disse-me mais de Trás-os-Montes, deste País inteiro, qua a mais eloquente reportagem tomada «sobre o vivo».

A.R. – Isso é muito bonito. E aquele travelling dos dois Apóstolos, o Pedro e o João, também. Mas repara: já vais buscar um «ai dolor, ai dolor» que nos leva para muito de autêntico, na nossa poesia, e na nossa tradição. Aí com uma carga mística, etc. mas, na realidade, quando a gente fala em «ai dolor», talvez não esteja longe de uma raiz de linguagem autêntica e das cantigas de amigo. Mas quanto à outra carga retórica e essa espécie de paramentos verbais… Claro pode ser aproveitado como um factor de retórica e de eloquência que a arte, noutros tempos, também soube utilizar magnificamente, mas é falível… depende do realizador, e do aproveitamento que ele faz.

J.C.M. – O Oliveira deixa-se, por vezes, embalar na fascinação do texto. É atraído por uma certa musicalidade (não confundir com espírito da música), pelo lado bem soante da palavra, e não limpa o texto de elementos espúricos.

A.R. – O texto foi respeitado porque isso lhe interessava para a expressão patética e, até, literária e mística. O filme – que é essencialmente românico – passa de românico a gótico, precisamente nessas fases mais de trombeta e mais eloquentes. Há, no Acto da Primavera, um hibridismo que é jogado nesse sentido. Aliás, falámos uma vez acerca disso e o Oliveira concordou plenamente.

 

BASTA AMAR UM PEQUENO CILINDRO

 

J.C.M. – Agora, passemos de chofre ao Jaime. O que é que te interessou na escolha do motivo?

A.R. – Acima de tudo, interessou-me a vida de um homem e, sem lamechice, parece-me que só poderia interessar outras pessoas se pudéssemos converter esteticamente a vida desse homem, dado que ele, por si, já não se podia defender, ou atacar, ou até nem lhe interessaria. Não sei. Se me perguntares porquê, posso dizer que me identifico com o conflito dele e que esse conflito se identifica praticamente com todos os que estão na condição de Jaime. Posso também dizer que procurei fazer um filme, humildemente, isto é: que, ao menos, fosse um modo de salvaguardar, através do registo em película, os desenho que ele deixou e considero geniais. Se fosse, pois, apenas um puro trabalho de arqueologia do cinema, eu já teria ficado feliz, dado que soube que grande parte da obra dele desapareceu.

J.C.M. – Eu não sou um entendido em artes plásticas, mas pareceu-me indiscutível que estamos perante um universo pictórico de uma extrema riqueza.

A.R. – Eu creio que basta amar um pequeno cilindro da Mesopotâmia para «sentir» que o Jaime é um artista de génio. Mas, quem vibra com esses selos de argila antiquíssimos vibra com a pintura de Lascaux, Altamira, Giotto, Rousseau, Léger, Séraphine Louis… O bestiário de Jaime, com o seu aurinhacense e madalenense, ao mesmo tempo que um desfilar de arquétipos, é um dos mais singulares da História da Arte. E a sua estética «fauve» ou expressionista, se não foi contemporânea desses movimentos europeus, também nada lhes deve. O seu tempo histórico e psicológico outro era. Era outro o seu espaço de gruta, subterrâneo ou sideral, com nuvens onde viajavam, sonhavam e sofriam, 1000 homens dentro.

J.C.M. – Temos, portanto, por um lado, o teu interesse pelas artes plásticas…

A.R. – Sempre me interessei profundamente, mas nunca consegui ver o Jaime pintor separado do homem, e até se me pôs um problema: é que o Jaime começou a pintar aos 65 anos e, até aí, há uma vida para trás e não pude precisar as causas que determinaram aquela pintura, mas ao estudar mais de perto a sua vida, o lugar onde nasceu, o lugar onde esteve hospitalizado, verifiquei que a sua pintura era profundamente determinada por esses factores. E como as obras de arte são pintadas por alguém (um traço é feito sob um pressão emocional), interessava-me saber o que está por detrás do pintor. Talvez assim encontrasse um sentido mais profundo. Não estou a fazer confusão. Isto não quer dizer que quem não conheça nada da vida do Jaime não possa gostar dos seus trabalhos ou avaliá-los, mas se é verdade que um símbolo plástico representa, abstracto ou concreto, a luta por essa representação é encontrar a sua poesia ou dialéctica. O que se tentou foi mais uma dialéctica da pintura do Jaime, com todas as suas implicações poéticas, dramáticas, biográficas, etc. É por isso que acho injusto que não se considere Jaime um filme de fundo, um filme de ficção. Não é uma história, mas é um filme onde tudo tem importância. Até o seu próprio aspecto descascado, sem preciosismo. Parecia-me um atentado à condução de um trabalho deste género apoiá-lo em preciosismos. Não quero desculpar a falta de brilho do filme, a falta de retoques, mas houve uma espécie de pudor que comandou a própria concepção estética. Eu também trabalhei com esferográficas.

 

DAR-LHE A DIGNIDADE DE UMA ESTÁTUA

 

J.C.M. – Essa espécie de pudor que tu, muito justamente, não dissocias de uma concepção estética, parece-me que tem ressonâncias muito profundas em todo o movimento global do filme e começa por ser muito evidente, logo no início, quando a câmara se situa, face ao pátio do hospício, em obediência a uma reflexão de ordem moral que se poderia postular em termos de procura do lugar exacto – o lugar que, simultaneamente, destrói a noção de fronteira, da mesma forma que destrói o próprio rectângulo do enquadramento e prepara, se assim se pode dizer, a série de jogos circulares, sem começo nem fim, em que todo o espaço fílmico se articula.

A.R. – Podia dizer-se que se espreita para qualquer sítio, assombrado com o que se vê, ou para não ser visto, e não se pode mostrar o espaço todo. É uma selecção visual, não há espraiamento. O compromisso de a câmara ter sido usada à mão, e representando, em certa medida, o desmunido do olho humano, pareceu-nos a maneira mais certa de chegar a uma certa crueza de observação. A própria perspectiva nos feria, a profundidade de campo, tudo o que fosse fazer passagens ou modelações. Há ali uma espécie de trabalho em madeira, no plano, que o reduz à essencialidade. Evidentemente que se podia ter feito a sequência em continuidade, mas tudo isso implicava muita palha no meio, e eu não podia dirigir os doentes da maneira como os dirigi, conseguindo a própria sublimação de um oligofrénico, dando-lhe a dignidade de uma estátua de Henry Moore, que a doença, às vezes, não permite e repugna muita gente, mas que, a mim, como ser humano, me toca profundamente, pela fatalidade da doença dele e pela maravilha que é.

J.C.M. – Outra coisa que me impressionou particularmente no filme é o facto de a doença nunca estar presente.

A.R. – Não há doentes, no filme. Não há normais nem anormais.

J.C.M. – O único referente são os uniformes. No plano da barbearia, por exemplo, os gestos de trabalho, entre os barbeiros profissionais e os internados, são idênticos, e só distinguimos a situação real de cada um, porque uns estão fardados e os outros não.

A.R. – Nesse friso, até queria chamar a atenção para o facto de poderes encontrar figuras das mais admiráveis, desde figuras que poderiam ser de grande estatuária românica, barroca, a homens do dia-a-dia. De resto, se uma preocupação tive, e poderia ser um princípio moral, foi indeterminar e destruir a fronteira da normalidade e da anormalidade, sem «parti-pris», mas pela razão simples de me estar no sangue e na inteligência, até porque estou convencido que grande parte dos anormais estão cá fora e muitos normais, hospitalizados. Classifico mesmo essa divisão, em extremo, como racista. É um dos grandes problemas do nosso tempo, em qualquer parte do mundo, e tentar destruir esse preconceito era, para mim, muito importante. Devíamos, por certo, pensar profundamente no lugar social privilegiado que os ditos doentes mentais ocupavam nas comunidades estudadas pelos antropólogos. Trabalhei entre eles com grande alegria. Foram admiráveis em tudo o que lhes pedi e em tudo o que ajudaram.

 

SÃO OS HOMENS COM NÚMERO

 

J.C.M. – E não houve, por vezes, uma certa estranheza e curiosidade malsã por parte da equipa de filmagens?

A.R. – Talvez só estranheza, e da primeira vez, no primeiro contacto, mas depois todos se sentiram como se estivessem entre amigos.

J.C.M. – No final da panorâmica, na barbearia, falaste em friso e, realmente, as figuras são dispostas em friso.

A.R. – Ainda é uma metáfora do Jaime a pintar, cuja obsessão e fascinação ouvimos na banda sonora. E as figuras que lá estão ainda são as figuras obscuras que o Jaime dizia pintar. Na obra expressionista dele há um contraponto entre a pintura animalista e o humano, as partes animalistas são os arquétipos do campo, de qualquer época, e aquelas figuras expressionistas são não só os seus companheiros de hospital, mas os companheiros de qualquer quartel, de um hospital que não seja de alienados, de uma cadeia, de um orfanato, etc.
São, digamos, os homens com número. O friso que aparece no final da panorâmica é o homem submetido ao ordenador. Ordenador da época, ou não. A construção do filme entra e sai dos desenhos. Quer dizer: não há desenhos de um lado e vida real do outro. Entra-se e sai-se livremente. Faz tudo parte de uma unidade que é o filme. Na realização há uma estilização das figuras de Jaime e, nas figuras de Jaime, pela estilização que se operou, o real hospitalar acaba também por ser reflectido.

Exemplificando: em toda a sequência inicial a sépia, todas aquelas figuras foram dirigidas, não para serem bonitas – embora, para mim, fosse importante consegui-lo – mas para serem dirigidas com o rigor com que um realizador dirige os seus actores profissionais. Não seria tanto por exigência dos raccords ou do ritmo do filme, mas pela exigência da ascese que as figuras têm na nobreza da atitude, ascese plástica que o Jaime também lhes conferiu. Talvez por isso, acabei por conseguir criar uma atmosfera geral, entre arte plástica e o real, através dessa interferência mútua. As próprias figuras ficam tanto mais humanas quanto mais escultóricas.

 

O GRANDE TRAMPOLIM DO FILME

 

J.C.M. – Isso é fabuloso na sequência que abre com aquela figura, envolta num manto colorido, em primeiro plano. Dir-se-ia que aquele gesto gravíssimo de erguer o braço é que é comanda tudo, introduzindo no filme uma nova dimensão, na qual tu dás o motor e ela parece comandar a acção.

A.R. – Essa figura é «Deus». Quanto a mim, é das sequências mais complexas do filme. Começa por ser uma sequência metafísica. Está implicada na sequência anterior. Aquela porta e aquele jogo de luzes e sombras com o vértice é, realmente, uma morte alusiva a Jaime. É se quisermos, o «Além». É também teatro, e tem uma explicação. Também pode ser uma actividade lúdica dos internados. Do próprio realizador. É uma sequência que, ainda hoje, me dá que pensar, mas é, sobretudo, a possibilidade de entrar na transfiguração que, a seguir, se opera no filme. É o grande trampolim do filme, uma vez que começa com muita gravidade, banaliza-se, na medida em que descobrimos o balneário, mas se súbito, compreendemos que é o túmulo de Julio de Medicis porque todo aquele alabastro se transforma em túmulo secular. É uma morte cheia de dignidade.

J.C.M. – Tu passas do exterior para o interior com um travelling à mão que acaba no fundo da banheira e faz raccord…

A.R. – …com o barco. Essa sequência é, por assim dizer, uma descida ao Lethos, aquele cãozinho que aparece é um enterro do Jaime e, ao mesmo tempo, a entrada no hospital. Se bem te lembras, há o rio de cartas que faz contraponto com esse rio e raccorda com os desenhos. É também uma introdução aos desenhos.

J.C.M. – Portanto, o fundo da banheira liga com o fundo do barco.

A.R. – E quando se volta novamente ao cãozinho, há uma água lodosa, semelhante à do castanho do fundo da banheira, entre outras coisas. Tão importantes como os raccords dinâmicos do filme, são os raccords cromáticos que, ao mesmo tempo, servem a dinâmica que o filme exige e a dinâmica que, de igual modo, é exigida pelas artes plásticas. Esses raccords tanto são de parentesco como de contrariedade. Ás vezes, parece que o filme se descose, mas não. Nesses momentos, estão a equacionar-se outros valores. É o caso de sequência das botinhas. De repente, estamos na Assíria, com todos aqueles pés que são uma representação plástica da Mesopotâmia.

J.C.M. – Isso também tem que ver com pontuações puramente musicais.

A.R. – O que me fascinou foi quando senti que os meios se provocavam permanentemente uns aos outros, sem que, com isso, se autonomizassem. O filme fugiu-nos sempre. O Jaime também parecia fugir.

J.C.M. – Como todo aquele que salta no vazio e atravessa várias mortes.

A.R. – Realmente, ele morre diversas vezes. Numa legenda, diz que morreu 8 vezes. Noutros escritos diz que morreu quase 100. É como nós que morremos um pedaço todos os dias. Ele próprio sentia que ali morria muitas vezes. Podemos analisar isso do ponto de vista do delírio ou do diagnóstico da doença (o Jaime era um esquizofrénico paranóico), mas na nossa vida também dizemos isso vezes sem conta. Morremos e renascemos, como naquele travelling final. É o Renascimento, Assis, Giotto, Fra Angélico, é uma água lustral de prado, de flores, é, de novo, a entrada nas urtigas que também dão flores, da parte final.

J.C.M. – A mim lembrou-me os grandes líricos do cinema soviético. Talvez Dovjenko…

A.R. – Só conheço A Tempestade na Ásia de Poudovkine, o Ivan e o Alexandre Nevsky de Eisenstein. E uma coisa chamada Os Alegres Foliões de Alexandroff. Não vi quase nada.

J.C.M. – Eu também não, é secundário, mas o que me impressionou foi a justeza da velocidade do travelling. É que, de repente, é todo o espaço a abrir-se, a plenos pulmões, a tudo, com uma energia incomum por estas ocidentais praias…
A.R. – Mas se bem te lembrares, estivemos quase sempre num espaço neutro, num espaço plástico, num espaço arquitectónico fechado, num espaço, por vezes obsessivo.

 

AQUELA GENTE VEIO DE ONDE HAVIA URZE

 

J.C.M. – Mas tu quebras, embora, diferentemente, sem o tom gritado da provocação cósmica que o travelling é continuamente a tensão desses espaços claustrofóbicos! Estou, por exemplo, a lembrar-me da inserção de um plano de urzes do exterior, na sequência do pátio que, aliás, é também a introdução, no filme, da primeira nota de cor ou, se preferes, do primeiro acorde de cor.

A.R. – Mesmo assim, é um raccord sentimental, com a festa ao gatinho e é, também, sépia daquele espaço, uma espécie de chamada: aquela gente veio de onde havia urze, ou de onde ainda se pode sonhar com urze, ou, apesar de tudo, apesar de todas as condições em que os homens vivem, ainda há urze, ainda há água. Ou tem que haver! Talvez aquele homem que acaricia o gato tenha tido um, ou talvez esteja a acariciar a urze. Depende do delírio do espectador. Não sei. Não posso oficiar.

J.C.M – A presença de uma cisão entre os seres e as coisas, a flagrante brutalidade desse corte é particularmente premente no filme e acho que, ao falares em raccord sentimental, tocaste o seu movimento mais profundo – o da evocação (que não é só nostálgica) de uma unidade perdida. É inútil recordar que esse é, talvez, o movimento mais fecundo de toda a arte moderna, da que vai de Rimbaud a Klee, passando, sei lá, por Pessoa, Brecht, Godard, Joyce, Stockhausen, Char, etc., mas julgo não errar muito arriscando-me a dizer, e não leves isso em conta de entusiástica valoração, que, ao restabeleceres ficticiamente essa unidade, inventaste os mais belos falsos raccords da história do cinema, em minha modesta opinião.

A.R. – Hoje estamos como as pessoas chamuscadas. A concepção antropocêntrica começa a ser ultrapassada tão tardiamente quanto civilizações milenárias nunca a tiveram. Parece que acordámos tarde de mais, para nos apercebermos que o homem se integra numa pequeníssima coisa que é a terra, num grande fenómeno da vida do universo. Eu, homem, é pouco. E é imenso…

 

UM POUCO O QUE KEATON FAZIA COM OS «GAGS»

 

J.C.M. – Falemos, por exemplo, da água. As variações de intensidade da água, a distribuição de regiões fluidas, ao longo do filme, obedecem a valores muito chegados a certas pesquisas formais da música moderna (estou a pensar em Stockhausen), mas propiciam também uma inventariação muito fecunda de uma antropologia estrutural do imaginário.

A.R. – Às vezes, é só a água que a gente bebe, outras vezes, a água que nos arrasta. No caso do Jaime, a utilização da água deve-se ao facto de ser muito obsessiva, nos seus escritos. Ele nasceu à beira de um rio, pescou lá muitas vezes, muitas vezes regou os campos com as suas águas. A água, no filme, é um símbolo, inclusive na sua própria cor ou curso. Tomemos a água do chafariz. É um chafariz vulgar, mas, quando o vi, pareceu-me uma coisa terrível. Hoje, acho fundamental que o chafariz exista naquele lugar. De repente, é o fio da vida, uma ampulheta, é uma água que aquele deus, digamos assim, manda parar. A água do rio é a água dos corvos, e das raízes arrancadas, e dos nós dos troncos. Quando vemos aquela panorâmica da montanha, por aquela montanha correu muita água, muita fonte. E o Jaime nasceu à beira do Zêzere e esteve sempre ligado à água. Mas se a água permite um significado imediato de denotação, também permite o de conotação, e eu acho que o que é fundamental, em todo o filme, é o significado imediato de cada plano ser imediatamente destruído pelo jogo de associações e de contradições que estabelecem entre si. Nesse sentido, parece-me que existe um pouco o que o Keaton fazia com os «gags», ou seja: o filme está permanentemente a fugir da mão. O espectador não tem tempo de ter a boca doce, nem de agarrar os planos por estes serem agradáveis. Tem de os agarrar, no contexto do filme todo. Há conclusões que só irá tirar mais tarde, outras há que, eventualmente, será forçado a abandonar. Isto não tem nada a ver com complexidade. Foi assim que sentimos e trabalhámos. Não há intelectualismo de nenhuma espécie. Há conhecimento, mas conhecimento que foi utilizado como uma ferramenta que ia servindo cada vez melhor, para atingirmos o fim que pretendíamos. Não é um filme difícil, não sendo um filme linear.

 

«DEIXEI AS ARCAS»

 

J.C.M. – Precisamente porque obriga a um enorme trabalho de leitura, é um filme fascinante (o que não quer dizer, antes pelo contrário, que ceda à fascinação) e, tanto mais, quanto te vais encarregando de apontar pacientemente algumas pistas. Assim, gostava que falasses um pouco da sequência da casa do Jaime.

A.R. – Das arcas. Deixei as Arcas. É o mesmo caso das águas. Aparentemente, é a arca de madeira, mas é a barriga de um animal, uma casa que se deixou, um sonho que foi violado, uma paisagem que ficou. Quando ele diz deixei as arcas, para mim, é tudo o que o obrigaram a deixar. A arca é envolvente, mas ele deixou as arcas abertas, deixou as arcas ao tempo, e a prova é que, nos desenhos, as figuras dos animais também são arcas. Um barco é uma arca, a casa, esburacada ou não, também.

J.C.M. – O plano final da sequência, sobre o tecto, fecha esse círculo, mas, entretanto, o percurso pode ser percorrido em toda a multiplicidade dos seus sentidos: há o real, há o surreal…

A.R. – Se for surrealismo como dimensão do homem para alterar o real, para lhe acrescentar o que está nas profundidades e nas alturas e não, propriamente, o copo que se agarra, mas o copo que nos corta, o copo por onde a gente bebeu, o copo que a gente transfigura, a sequência é surreal: o conjunto da construção dos planos também é paredes de arca, arca cósmica, arca de sonho.

J.C.M. – O guarda-chuva aberto, no interior, sobre o círculo de milho…

A.R. – Não é o guarda-chuva dádá. O guarda-chuva é um instrumento dos pobres, é um instrumento útil, é um instrumento poético. Temos a infância cheia de guarda-chuvas, desde o guarda-chuva, com buraquinhos, onde cabiam sempre quatro ou cinco, na vinda da escola, até ao guarda-chuva que é posto atrás das portas. Sei lá. O guarda-chuva do amola-tesouras das feiras, o guarda-chuva das cidades sem gabardina, o grande guarda-chuva do Extremo Oriente… O guarda-chuva é o cogumelo, uma árvore, e ali, fundamentalmente, também é o preto no amarelo.

J.C.M. – Mas não se diz que o guarda-chuva aberto, dentro de casa, dá sorte?

A.R. – Sempre ouvi dizer: «Não abras o guarda-chuva dentro de casa que dá azar!». Aí talvez o Jaime tivesse tido azar, mas quando diz que deixou as arcas – e o Jaime tinha o delírio de minas de ouro – não podia haver, sem parafrasear Guerra Junqueiro, melhor ouro quer o milho. Espero que, um dia, o ouro da terra seja o milho, e não o ouro da África do Sul. E, de repente, fecharam-se aquelas portas todas, tudo aquilo era de uma madeira maravilhosa e, subitamente, lembrei-me de dar largas à imaginação. Aliás, na infância, vi secar muitas espigas dentro de casa porque, quando chovia, tinham de as tirar das eiras. Ao pôr ali o milho, lembrei-me do guarda-chuva, e ao pôr lá o guarda-chuva, lembrei-me dos grandes acordes modernos do amarelo e do preto, tudo começou a convergir para uma emoção profunda. Depois, foi tudo o que a sombra do guarda-chuva arrastou, à medida que tudo se organizava, quer cinematográfica quer plasticamente. Quando o Jaime tinha um delírio, pegava numa picareta e começava a picar no cimento do hospital, para descobrir a mina de ouro. Também tive o meu delírio. Peguei na picareta… Não tenho vergonha por isso. Não te esqueças que essa sequência começa por ser vista pelo olho do burrinho e, imediatamente, o olho do burro é o olho humano.

J.C.M. – Percebe-se que é um animal, mas não se chega a saber que é burro.

A.R. – Sim, não se sabe, mas esse arranque, sem alterar o plano, é logo uma elipse. Esse olho do animal é imediatamente o olho do observador. Quando se vê o primeiro plano, na casa, é o burrinho que está a ver o milho amarelo e o guarda-chuva, mas quando se vê o plano seguinte, automaticamente, é uma pessoa que está a espreitar, através de uma fechadura, as arcas do Jaime. No fundo, são também as arcas da nossa infância. E a palavra arca é muito bonita.

J.C.M. – E a cabra? E as maçãs penduradas? E a máquina de costura?

A.R. – São as três maçãzinhas de ouro. São três planetas. São o amarelo necessário, naquele castanho imenso. A máquina de costura não é a do Fernando Pessoa, nem a dos filmes expressionistas. É… As maçãs são as maçãs da aldeia que se penduram no tecto para não apodrecerem. Não sei se estiveste alguma vez num palheiro, mas quando já não há fruta, os nossos tios da aldeia metem-na entre a palha dos alpendres para ela durar, e come-se fruta todo o ano. E há, na casa, um cheiro muito perfumado! Tudo aquilo estava abandonado, era a casa que o Jaime, em certa medida, tinha deixado. Era preciso amarelo naquela casa, era preciso levar três flores ao Jaime. Isto parece literatura, mas se quiseres chamar-lhe candura, amor pelo Jaime, chama, embora, no filme, tires outro significado das maçãs.

 

A GENEALOGIA DA CABRA

 

J.C.M. – Lembra-me um poema de René Char que, um dia, vi escrito num quadro negro, no interior de uma casa que cheirava, curiosamente, a maçãs.
E a cabra?

A.R. – Se quiseres uma dimensão mitológica para ela, se quiseres ir para muito longe, vamos para além dos Celtas. Co’os diabos, se há pessoas que se preocupam com a sua árvore genealógica, eu preocupo-me muito com a genealogia da cabra.

J.C.M. – Mas para chegares aos Celtas, era preferível teres posto um porco.

A.R. – O porco só não me dava ali, na poética das relações. A cabra era também a malteia. E a Diana não anda muito longe. Uma gaita de capador é o capador que toca, mas é um bocado o Pã que anda naqueles montes. É uma actriz também. É a cabra perdida porque o Jaime era pastor. Isto ainda parece literatura, mas repara que houve um tempo muito grande dado à cabra. Ela chega a comer a sua própria sombra. E ouve vozes. Ela ouve vozes. Há uma voz, no Canto dos Adolescentes de Stockhausen que arranca sobre ela. E é bonita também. Plasticamente é uma maravilha. E é a cabra metida numa casa. Também é uma das arcas. É a arca metida na arca. E há aquela respiração funda que ela tem. E há o espaço fechado. Há a grande arca aberta que vimos anteriormente, a grande aberta e terrível, que é quase um caixão com a cama diametralmente oposta.

J.C.M. – Para mim, é a mais bela actriz do cinema português.

A.R. – E acaba justamente a comer a própria sombra. Foi um escândalo. Não imaginas o trabalho que foi para a segurar. Tivemos de a pegar ao colo para subir dois andares. E demos-lhe a categoria de conviver com a gente, como já viveu, noutros tempos. Dignamente. As pessoas só têm cães de luxo em casa. Não sei porquê. Podiam ter uma cabra. O Picasso gostou imenso delas. E tinha razão. Vivia com elas, mas é um plagiador. A cabra até tinha a caca bonita. Sem brincadeira.

É um animal lindíssimo. Sem a mais pequena ponta de malícia ainda nos chegaram a perguntar se não a queríamos a pôr a dizer mé…

J.C.M. – Podia-la ter posto a dizer Mé-lo Neto. Ou melhor: não. Podia ficar vaidosa, em excesso, ou excessivamente triste.

A.R. – Eu sei lá! Claro que, em toda a sequência, só há duas cores. É toda construída em valores – até para opor às cores fortes da pintura do Jaime – graves, donde saltam as cores vivas das maçãs e o vermelho do fio da dobadoira. Mais nada.

São aquelas cores fundamentais com que, muitas vezes, com um só tom, um pintor segura uma composição inteira.

 

UM FILME A COR SOBRE CORES

 

J.C.M. – Outro aspecto que, no filme, me parece extremamente interessante, é todo o seu jogo de cromatismos.

A.R. – Precisamente, naquela sequência com um aparente minuete de Telemann depois do patético aparente que é o choro da viúva, rompe, nuns planos muito curtos com azuis, uma certa graciosidade, embora ameaçada, de minuete…

J.C.M. – Desculpa a interrupção, gostaria de introduzir um parêntesis: quando, no plano da viúva, se pressente que ela chegou ao limite das suas forças anímicas e vai desabar a crise, tu cortas imediatamente o plano…

A.R. – Repeti esse plano seis vezes, mas é muito difícil pedir a uma pessoa de 71 anos que, aos trinta e tal, com uma escadaria de filhos, se viu privada do marido, chamasse por ele como se estivesse nos campos.

J.C.M. – São muito estranhas as tremuras que ela tem.

A.R. – Que ela tem, mas nós estávamos a desenterrar o marido. Por vezes, ela vinha gritar por ele para a meio dos campos. Foi uma perda muito grande e, passados tantos anos, a gente lembrar-se de fazer um filme sobre o marido e bater-lhe à porta com toda a aparelhagem às costas, hás-de concordar que é uma violência muito grande. E nunca digam que, no filme, esse aspecto é documental, porque eu zango-me. Não tem nada a ver com um documentário, nem biográfico, nem nada. É uma espécie de memória e de imaginação.

J.C.M. – Voltando à cor, peguemos onde tu a matas: na sequência do monocromatismo a sépia.

A.R. – A razão da sequência a sépia anda perto da «verdade» se se considerar inúmeras determinantes… Vejamos, ao acaso, algumas: roupas castanhas dos internados; espaço arquitectónico quase metafísico; ausência de cor vital na enfermaria; quase irrealidade do «mundo» em que na alegria de quem se situa e identifica, Jaime viveu; uma oxidação evidente a nobreza de certos tons velhos do cinema mudo; sem cor, ainda, num filme a cor sobre cores; antinomia para a sequência de E eu a rir-me… e o cromatismo fauve de Jaime, uma intenção de gravura a água-forte; uma sequência-metáfora, em «flash-back», reportando-se a 1938; um raccord de tom, fundamental, para o retrato inicial do artista, no ano de internamento, e para a sua primeira frase Ninguém Só Eu, a filtragem de um realismo imediato e patético; uma redução que se torna expansiva; uma homogeneização psico-social; uma poética e uma dignificação…

 

NÃO TER DE EXPLICAR NADA, NA ESPERANÇA

 

J.C.M. – Gostaria de te pedir, se isso não te causa grande dano, que falasses um pouco acerca das relações estruturais entre as imagens e os sons do filme.

A.R. – É-me difícil sintetizar em palavras esta estrutura. Os estruturalistas, mais neutros, mais metódicos, serão bem mais capazes disso… Tu sabes que, num filme que não é filmado síncrono, fica a porta aberta para a imaginação mais desvairada ou para a sonorização mais imbecil. Não há complementaridade na relação imagem/som do Jaime. Não há mesmo um único pleonasmo: nem sequer quando Armstrong pronuncia white table e aparece uma mesa branca (há mesas por onde passou muito cotovelo em campo). A propósito de imaginação livre e de como evitar a sonorização imbecil, gostaria que fosse bem meditada a integração da St. James Enfermary na 2.ª sequência do filme e na passagem para a 3.ª. Sabes que, além da música, diálogos, ruídos, utilizamos, como matéria sonora, grandes bosques de silêncio. É tão intenso e carregado, esse silêncio com timbres, como o Stockhausen mais alucinante.

A estrutura imagem/som dinamiza uma transformação permanente. Leva sempre mais além (ou aquém) o momento ou a significação imediata do plano, da cena e de todo o filme. Exemplificando: o último desenho do Jaime, regresso à matriz, a morte, termina com um travelling avante submerso em fundido, martelado com o tantã de Stockhausen. Ora bem: o plano seguinte é o de um relógio no frontão do hospital, que marca 1 hora da noite (dado biográfico, a hora a que Jaime realmente morreu). Ouve-se uma pancada de relógio, mas, a seguir, no psicodrama do encontro-desencontro no coradouro, na despedida impossível Jaime/Mulher, as pancadas de 2 até 8, são badaladas de sino de aldeia, anunciando Trindades, dobrar a finados… Ao 9.º som, a badalada é de novo uma pancada de relógio, são 9 horas, e estamos numa barbearia onde se trabalha com afã e onde um ex-companheiro de Jaime, ao cair dessa 9.ª pancada-badalada, deixa cair a cabeça para trás, em repouso, e evoca o artista. Sem especulação, mas porque falaste de estruturas (e tanta natureza elas são!), há que referir o decorrer da marcação cénica e da acção e a sua dialéctica com o som: à 2.ª pancada, um internado (Jaime) alija 2 canados de café, à 3.ª recolhe um levíssimo dente-de-leão; à 4.ª vai desaparecer, para sempre, por detrás dos lençóis (fronteira transparente e opaca da vida e da morte), no decorrer da 5.ª, 6.ª, 7.ª e 8.ª, outra internada (como se fora a Mulher) entra em campo, oferece, eleva e fica desamparada com o cesto, as primícias da terra, do amor… Esta durée da poética e mística rural, representada por internados, tem vagas sucessivas de significações, quanto a mim só possível pela dialéctica imagem/som, entredevorando-se, transformando-se. É abusivo continuar a dissertar sobre «isto» e o encanto foi fazer, descobrir, desesperar, não ter de explicar nada, na esperança que os outros sentiriam, ouviriam.

 

PASSAVAM OS DIAS A ESCREVER

 

J.C.M. – Há também uma relação permanente entre elementos escritos, entre uma grafia, de sugestão plástica, e uma fonética, de sugestão musical. No fundo, isto acaba por ser tautológico: é ainda uma relação entre imagens e sons.

A.R. – Se a obra plástica do Jaime deu razão para uma dinâmica da imagem, a própria escrita dele, deu razão para outra espécie de dinâmica: ou para sonhar com as frases que ele deixou escritas ou, até como fenómeno de ilusão que, por si, é outra plástica psíquica do Jaime. Exigia também um tratamento cinematográfico. Exigia que estivesse em relação com o próprio Jaime e com o que isso significa. Há uma sequência que tem cinco tipos de escrita diferentes e seguidas.

J.C.M. – Mas há mais: a linha do gráfico hospitalar, por exemplo, joga com a linha do monte, apesar de serem linhas adversas: uma é partida, cheia de arestas, a outra é ondulada, cheia de contornos suaves.

A.R. – Exactamente. Isso é importantíssimo. O Jaime fazia os seus gráficos plásticos. O hospital, também para determinar cientificamente o seu estado de saúde. E havia os gráficos da natureza onde Jaime se tinha inspirado e que, para além de Jaime, sempre existiram. Há sempre uma relação entre tudo, mesmo naquela sequência das cartas escritas, o sobrescrito é um barco do Zêzere que encosta francamente a um cais, mas, simultaneamente, é um raccord necessário, para a plástica do Jaime entrar, pela primeira vez, no filme. Precisei desse elemento para encaixar o rio mas, ao mesmo tempo também me serviu de trampolim para as artes plásticas. O grafismo está em ambas as coisas. E é a escrita de Jaime que determina isso. São coisas aparentemente mais subtis, mas não são nada subtis. E o Jaime não dissociava a palavra escrita da imagem desenhada. Passava os dias a escrever.

 

NÓS NÃO ESTAMOS EM LEILÃO

 

J.C.M. – Sei que estás a preparar um filme sobre o Nordeste transmontano, que precisamente se chama Nordeste. Podes dizer qualquer coisinha sobre isso?

A.R. – Não posso garantir que seja um filme decente, como o Jaime. O que posso dizer é que estamos empenhados numa luta idêntica e considero um dever histórico – até por respeito para com todos os Nordestes que existem ainda no mundo – chegar a tempo. Perder valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora, perdermos esse Nordeste, é como perdermos, para sempre, espécies da natureza e, um dia, talvez soframos horrivelmente, ao imaginá-las em álbum, se existirem. Todos ficaremos profundamente pobres. Não me interessaria nada que Portugal tivesse o maior produto nacional bruto do mundo se, amanhã, a autenticidade de províncias como o Nordeste – são digo autenticidade sob o ponto de vista etnográfico ou regionalista – digo, naquilo que representa de valor humano, na civilização, e de valor geográfico, na terra, se perdesse. E não o digo levianamente, porque desde 57 que contacto com o Nordeste. É horrível salvar um capitel românico para pôr num museu. Um capitel era um elemento de uma coluna, a coluna pertencia a um pórtico, o pórtico pertencia a uma catedral, mas isso, com todas as suas instituições, alienações e sonhos, ainda fazia parte de um templo habitado por pessoas. Neste momento em que tudo se homogeneíza, no péssimo sentido, considero gravíssimo que não façamos tudo o que está ao nosso alcance para impedir essa destruição, ainda que seja apenas através de um filme.

J.C.M. – Queres fazer o filme em 16 m/m ou em 35 m/m?

A.R. – A força plástica e telúrica da província é tão grande que o 35 m/m é que nos servia.

J.C.M. – Som directo?

A.R. – Não. O Nordeste tem muito som que já não é o som do Nordeste. Queremos recriar o som, de acordo com o som que o Nordeste teve ou deveria ter. Dir-me-ás que é falsear o real, mas, no nosso sonho, não pretendemos atingir uma verdade absoluta…

J.C.M. – Interrompo-te só para encaixar a frase de Novalis: «Quanto mais poético mais verdadeiro». É a minha única convicção profunda.

A.R. – … É uma espécie de respeito pela pedra que se está a esboroar, mas se temos o sentido da pedra é porque lhe demos muita cabeçada. E da madeira, e das pessoas que inventaram poemas, e das pessoas que semeiam, e das pessoas que vêem os filhos partir, que vêem os seus rios sem peixes, que matam e morrem. Apaixonadamente. Não imagino, a frio, o tempo que o filme possa ter. Determinar «a priori» o tempo de um filme parece-me ridículo. O tempo de um filme é interior e não tem nada a ver com o tempo psicológico de projecção. Um bocado de pão com azeitonas pode ser muito mais saboroso que o mais rico «menu». Um «hai-kai» pode ter três versos e ser mais poético do que uma longa epopeia. Infelizmente, temos todos colaborado nesse embuste. Creio que a erosão do Nordeste, não é só uma erosão de vento e sol e terra que a enxurrada leva, é uma erosão muito mais total, mas começa-se a provar que, por debaixo dessa erosão, há muita coisa que não é erudida e, por cima, muita ave que voa, muito homem que caminha e sonha. O Nordeste está em leilão. Está tudo em leilão, e há coisas que não se podem deixar leiloar, até, para «salvação» dos que vão comprar essas peças para pôr nas suas casas. Nós não estamos em leilão. A nossa responsabilidade não está em leilão. Não ponho isto como lema para toda a gente, mas para mim, é fundamental. Como pode ser fundamental fazer um admirável cinema nos meios urbanos. O que é preciso é descobrir os Nordestes de Lisboa. Também existem cá. Não gostaria de falar do que considero ambicioso porque, às vezes, descrever as coisas rouba-lhes emoção, mas não é só isso: os oportunistas são muitos e os aventureiros ainda mais e, como diz num provérbio Dogon, o estrangeiro só vê aquilo que sabe. E realmente não se pode julgar por aquilo que se sabe. É impúdico e vergonhoso o que estão a fazer – não digo ao povo – à etnografia. Aliás, a etnografia só interessa como recolha, não me interessa um programa etnográfico em relação ao Nordeste. Se for uma antropologia de ficção, então está certo, embora pareça paradoxal.

J.C.M. – Referir-se-á o teu verbo bem irado aos atentados que alguns mentecaptos televisivos têm perpetrado contra este país, ou estarás, pelo contrário, mal acordado de um sonho funesto?

A.R. – Refiro-me aos atentados televisivos, entre outras coisas. Uma coisa as pessoas sabem: é quando são ofendidas. Se já não o sabem, se nós achamos que sabemos mais alguma coisa do que elas, temos a obrigação de nos sentirmos ofendidos… Ou então que venha mesmo o raio, a erosão que leve tudo.

J.C.M. – Deus te ouça, e há-de ouvir, e, nessa certeza, proponho que esta entrevista comece aqui. Todavia, para que possa começar é preciso que acabe. Voltemos, pois, ao Jaime para que acabe bem. No final, enquadras o postigo gradeado, em cruz, da cela de Jaime e cortas para uma fotografia de Jaime, que irá ser o último plano do filme, tal como o primeiro era, também, uma fotografia de Jaime. Tudo o que se passou, passou-se, afinal, entre duas fotografias, dois instantâneos da vida de um homem.

A.R. – Era importante pôr o retrato dele, no fim.

Ele escreveu: Animais como retratos de príncipes Olhos nas mesmas arcas…

 

 

 

 

 

Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pedro Páramo

Sunday, April 1st, 2018

 

Pedro Páramo
Margarida Cordeiro

 

Realizador: Margarida Cordeiro
Diálogos e Argumento: Margarida Cordeiro
Duração: 90 min
Formato: 35 mm, cor
Produtor: José Mazeda
Produção: Take 2000
Co-Produção: Ariane Films – Andres Santana (Espanha); Sand Films – Jaques Sandoz (Suíça)
Financiamento: ICAM

 

A leste do paraíso Juan Preciado desce para Comala à procura de seu pai Pedro Páramo. Encontra um jovem mestiço que lhe diz ser também filho de Pedro Páramo, mas que este, latifundiário cruel, já morreu há anos.
Inferno labiríntico de sofrimentos sem sentido, e, ao mesmo tempo um vibrante hino à vida e ao amor.

 

Portugal Filme, pág. 41, 2002.

 

 

***

 

 

António Reis et vous avez travaillé, depuis longtemps déjà, à un projet de film se proposant d’adapter Pedro Páramo, le roman de l’écrivain mexicain Juan Rulfo. Vous souhaitez poursuivre et achever le projet, notamment comme geste d’hommage à António Reis, et en même temps vous êtes très pessimiste sur la possibilité de le mener à terme, au regard du grand nombre de difficultés qui se trouvent sur votre chemin, à commencer par le refus, jusqu’à maintenant, de l’Institut Portugais de Cinéma de co-financer ce film (qu’il faut tourner au Mexique, ce qui en renchérit le coût), qui dispose d’une co-productio luso-helvétique. Pourquoi ce livre? Pourquoi le Mexique qui vous emmène si loin du Nord-Est du Portugal qui a été votre puissante terre de cinéma? Et, dans ces difficultés, que peut-on faire, nous, ici, pour vous y aider?

– J’ai travaillé trois ans et demi avec António, plus un temps équivalent seule. Le scénario est prêt depuis beaucoup de temps. On m’a promis de l’argent. Ensuite, on me l’a refusé net, il y a quelques trois mois.
Pour répondre à votre question, je vais vous raconter une histoire. António e moi, nous étions tombes amoureux fous d’un livre (c’est un chef d’oeuvre de la littérature mondiale). Ce livre était à la base de notre projet de film, un projet secret. Une critique de cinéma était venue au Portugal, à la Cinémathèque, voir des films portugais autres que ceux faits (et divulgués) par l’unique bénéficiaire du système. Elle a vu beaucoup de films, et aussi les nôtres. Elle a dit, très impressionnés, qu’elle sentait une atmosphère, un monde qu’elle connaissait bien, comme si nos quatre films dessinaient un aboutissement, une trajectoire jusqu’à une œuvre d’un auteur mexicain qu’elle connaissait. Comment s’appelle-t-il? avons-nous demande en sursaut. C’était Juan Rulfo. C’était Pedro Páramo. Déjà. Il y a 7 ans.
Quant à ce qui pourrait nous aider, un miracle seulement.

 

5èmes jounées (26-27-28-29 janvier 1995) de cinéma (cinéma ariel – mt st aignan) portugais, rouen – France, pág. 7, « 11 questions à Margarida Cordeiro», feitas a 21 de Dezembro e respondidas a 29 de Dezembro de 1994.

 

 

***

 

 

Queria dizer que, tendo em conta que qualquer um desses filmes é um cinema muito especial, muito conceptual…

– É irrepetível. Por isso acho um crime terem-nos cerceado o Pedro Páramo. O António ainda estava vivo, foram cerca de dois anos. Era a nossa saída da província pela primeira vez. Era o culminar do que tínhamos feito até ali.

O Pedro Páramo era o vosso quarto projecto, mas não conseguiram apoio do IPC.

– De todo!

(…)

Como foi a reacção da crítica aos vossos filmes?

– A crítica sei-a toda, porque está coleccionada, tenho um dossier impressionante, dado que tive de o fazer para concorrer como o Pedro Páramo. Concorri duas vezes por ano, durante oito anos – mais dois anos com o António, foram dez anos. A crítica era muita boa, em geral; o João Lopes, o Leitão Ramos, o João Mário Grilo por vezes também falava bem; nos actores, o Artur Semedo… Agora não me estou a recordar

(…)

Alguma vez pensou esquecer completamente o facto de durante dez anos não obter apoio financeiro para o projecto e…

– Era só a comparticipação portuguesa, a que eu tenho direito, porque eu pago impostos. Era só a contribuição portuguesa, porque o resto eu arranjava lá
fora. As co-produções é assim que funcionam, dá-se aqui uma fatia do orçamento e depois os co-produtores avançam. Não posso é passar para o apoio externo sem a quotização portuguesa. E foi isso que me fizeram, sempre me impediram na primeira fase. Cheguei a ficar em segundo lugar, eles não me punham nunca no fim da lista, andaram a gozar comigo mesmo. É opinião minha e dos meus amigos.

Nunca pensou pôr uma pedra em cima de tudo isso, comprar uma câmara de vídeo e começar a fazer os seus filmes, já noutra perspectiva?

– Não, não. Eu não tenho jeito para filmar, não sou boa técnica. Tenho ideias. Normalmente, o operador ajuda-me, eu digo: “Quero isto, ponha a técnica e faça-me isto desta maneira”. Tenho ideias visuais muito nítidas. Por exemplo, em relação ao Pedro Páramo tenho as cenas todas na cabeça, podia fazer esquemas. Cheguei a ir duas vezes ao México, havia sítios que inclusive já tinha escolhido.

O filme passa-se no México, portanto.

– Só os exteriores, que até nem são muitos, para ser mais baratos. Os interiores far-se-iam aqui para rentabilizar, estava tudo já esquematizado.

Acha que o facto de ser mulher pode ter tido alguma importância para não ter recebido a comparticipação?

– Eu pensei nisso no princípio. Primeiro: “Não vou ser paranóica, não me dão agora dão-me depois!”; depois, pensei: “Será por ser mulher?”. Mas não era! Porque a Maria de Medeiros fez, fez a Teresa Villaverde e fez a Margarida Gil. E eu concluí: “Não, não é por ser mulher, então porque será? Será porque eu pus o meu nome primeiro no Rosa de Areia e o do António a seguir?” Mas não. As pessoas que foram enterrar o António, os seus colegas do cinema, portaram-se muito mal. Pena não tinham nenhuma – eu não vi, mas pessoas minhas amigas viram. Também não era por eu estar a querer fazer cinema sem o António, portanto. Finalmente, gostava que me explicassem esse mistério, porque se repetiu, foi uma recusa tão nítida, que houve qualquer motivo que se prolongou nos vários júris. Saber qual é, não sei. Gostaria que me dissessem. Não é por eu ser mulher, não foi por não ter cumprido as exigências, apresentei os documentos na hora certa, etc. Faltou-me uma coisa: ter uma boa cunha, nas antecâmaras perversas das atribuições de subsídios para o cinema.

 

 

 

Ilda Castro – Cineastas Portuguesas 1874-1956, págs 92-107, Câmara Municipal de Lisboa, 2000