Archive for November, 2017

Novos Poemas Quotidianos

Friday, November 17th, 2017

 

 

 

É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

 

 

 

 

 

António Reis

Cinco Sonetos

Monday, November 13th, 2017

 
 
 

Se estás a chegar, a ir-te embora
estende tuas mãos com as flores
fica o perfume na minha camisola.
 
As raízes vindo sob a areia
ocultas do sol buscando a água
abrem-se distantes da semente
em lugares de luz, aí bate o vento.
 
Outra árvore faz agora a sombra
onde nos sentámos rosto a rosto
as mãos presas nas sedas da camisa.
 
O velho cacto voltou a rebentar
no tronco seco já sem os espinhos
um pequeno punho humedecido
em breve abrirá noutra flor.

 

 

 

 

 

 

O ar fendido pela borboleta
quimérica e nocturna e de cor azul.

 
O pólen do voo tomba no rumor
das achas da lareira amortecida.
Vejo os teus olhos vindo para os meus
com a água da paz de termos visto
o mesmo arco de vida atravessar
o lugar onde estávamos sozinhos.
 
O actor voltará para o escuro
das larvas e da terra apodrecida.
 
No chão de brisas de poeira
o tumulto do mundo é um luar
sombrio e essa dor serena
leva de nós todas as dores.

 

 

 

 

 

 

Quero ouvir neste fim de tarde
o vento matinal daquelas folhas
na marítima varanda aonde abri
duas cadeiras de lona cor de malva.
 
O frio do crepúsculo, os pássaros
sem rota nas faúlhas das queimadas,
as sarrentas plantas dos beirais,
as crucificadas flores dos agaves.
 
O cão negro veio dos arbustos
com um pau de musgo para nós.
As borras do café nas chávenas pesavam
sobre as folhas prestes a voar.
 
Esse vento na pedra da janela
regressa como volta um morto.

 

 

 

 

 

 

Os mapas do fumo contra o sol.
Na casa vazia ardiam as viagens.
Os corpos encontrados repousavam.
Um madeiro preso nas marés.
 
O outro vindo de tão longe
para nesta praia de detritos.
A fonte bate nos rochedos.
 
Perigos e medos como nós de palha.
Essa torre arde, é um farol
na névoa de sangue. Sou eu.
 
Estou em casa. Já saí.
O meu corpo descobre no teu corpo
o perecível inimigo da ruína.
 
Erguem-se em precipício as teias.

 

 

 

 

 

 

A água desta rocha despediu-se
do saibroso vento do verão.
As asas da calhandra rasgam
o torvo silêncio do outono.
Um charco de torrões vermelhos
vibra atravessado de girinos.
As cigarras cravadas nos estrumes
amortalham-se na luz da neblina.
 
Abro a cancela do quintal.
Pela lama das folhas dos plátanos
atravesso o pátio que já foi
jardim e lago e quase floresta
e regresso à casa arruinada.
O sorriso a crescer das cinzas.

 

 

 

 

 

 

Joaquim Manuel Magalhães

 

 

 

 

 

 

Uma figura luminosa

Wednesday, November 1st, 2017

 

Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do «Mudar de Vida». Pedi ajuda ao Bragança para os diálogos, mas ele não sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. O C. P. gostava de cinema, e estava no auge da fama: acabara de adaptar «As Ilhas Encantadas» do Melvile para a fita do Vilardebó. O C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha terra, o Porto, falar com o António Reis. Pouco conhecido cá em baixo, o António era uma figura muito activa na cena portuense.

Fazia trabalhos de campo, estudava a poesia popular do Alentejo e as falas dos pescadores da costa norte. Tinha sido um dos autores da «Arquitectura Popular Portuguesa», um livro muito citado pelos arquitectos da escola do Porto. Era amigo do Lixa Filgueiras, a grande autoridade sobre arquitectura naval tradicional, e planeava fazer um filme sobre o barco rabelo do Douro. L. Filgueiras seria mais tarde um personagem inesquecível num dos seus filmes de fundo. Para o Cine Clube do Porto ajudara a rodar o «Auto de Floripes», e tinha sido assistente do M. de Oliveira para o «Auto da Primavera». Estava a preparar uma tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de cultura popular.

E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras, que dizia o essencial através da experiência das coisas banais. Na cultura portuense de esquerda daquela época, o A. R. era uma figura luminosa. Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos de Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.

Com os meus complexos de meninote afortunado, fiquei rendido… E o António deu-me uma grande lição. Trabalhou nos diálogos durante seis meses, riscando e deitando fora. Cada dia mais magro, sempre em suores frios, à procura da vírgula, da pausa, da assonância secreta e expressiva. Os diálogos, arrancados a ferros, chegavam às filmagens à última hora, e não havia tempo para reflectir sobre eles. Só anos mais tarde, quando o «Mudar» se estreou comercialmente em Tóquio, é que tive oportunidade de os estudar. O trabalho de os traduzir para japonês era muito lento, e só assim pude descobrir a concisão musical, a riqueza secreta daquelas frases escritas com um ouvido infalível. Quantos diálogos haverá na nossa língua que se lhe possam comparar?

Mais tarde, quando traduzi do japonês uma série de 50 Haiku que foram publicados em álbum pela Moraes, pedi-lhe ajuda para «limpar» o texto. Não sei escrever em português, caio sempre em literatices falsas. Foi um trabalho de meses, as melhores aulas que tive na minha vida. O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos. Por influência dos haiku o António recomeçou a escrever poesia, lembro-me de ele me recitar um quase haiku belíssimo, uma cena de matança. Era sobre a neve a cair no prato, onde coalhava o sangue do porco. Onde estará este poema? Havia outro, misterioso, dedicado a um olmo. Perdido também? Começou a estudar chinês, apaixonou-se pelo Tufu, de quem eu lhe emprestei uma edição bilingue, comentada. Acabou por pôr o nome de Tufu a um grande mocho que vivia lá por casa em liberdade. O poeta chinês deve ter ficado encantado, lá no assento etéreo.

Cinema profissional em Lisboa

Quando o C.P.C. se criou em Lisboa o António veio trabalhar para a Guérin em Lisboa, decidido a tentar a sua sorte no cinema profissional, onde ele não conhecia ninguém. A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projecto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.

Quando veio o 25 de Abril o C.P.C. estremeceu. Os sócios acabaram por formar cooperativas independentes, já não precisavam do apoio de um órgão unitário coeso. Eu aproveitei a confusão para lançar o «Trás-os-Montes» como um projecto piloto de um futuro Museu da Imagem e do Som, um título populista grato ao poder revolucionário, e que eu tinha trazido do Rio de Janeiro. Lembro-me das salas vazias do centro, enquanto que os meus colegas andavam pelas ruas a filmar.

Eu e o António Reis ficámos sozinhos na sede a preparar os dossiers, a apresentar o museu e a pedir o dinheiro, que acabou por vir. Quase todas as fitas revolucionárias estão hoje esquecidas, mas o filme do António e da Margarida foi uma obra-prima que lhes deu fama europeia. Quando o filme estreou em Paris, no Le Monde saiu uma ordem terrorista assinada pelo Joris Ivens e pelo Jean Rouch, os dois mestres supremos do cinema documental: «Allez voir, toutes affaires cessantes, “Trás-os-Montes“!».

Durante dez anos o casal foi o ai-Jesus de uma certa crítica de vanguarda. A Kristeva correspondia-se com o António, e as pessoas que o encontravam nos festivais lá fora falavam dele mais tarde com a voz a tremer como se tivessem encontrado um profeta. Para esta aura ajudava o estranho magnetismo do António, e o trabalho incansável do António Pedro de Vasconcelos, que foi, à sua custa, e durante anos e anos, o melhor dos embaixadores do nosso cinema.

Já não acompanhei tão de perto a «Ana» e a «Rosa de Areia», filmes de que o Fernando Lopes poderá falar muito melhor do que eu. Nos últimos anos, com o novo-riquismo cavaquista, o ambiente era já muito desfavorável para os filmes de «poesia». O António deixou de ter apoio no I.P.C., e a «Rosa de Areia», produzida pela RTP, está ainda por estrear. O António passou por um período de solidão e de desânimo. Recentemente tinha sucedido um milagre. Um produtor suíço tinha-se apaixonado pelos seus filmes, e queria financiar o seu próximo projecto, uma adaptação de «Pedro Páramo», o maior dos romances mexicanos deste século. Era um projecto ambicioso, a filmar lá fora, com grandes meios… O António aparecia na escola de cinema contentíssimo, com uma alma nova. É um filme que nunca veremos, não me consigo conformar.

 

 

 

Paulo Rocha

 

Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991