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FRAGMENTOS DE POEMAS DA ÚLTIMA FASE

Thursday, November 12th, 2020

 

 

 

 

 

 

 

IDADES DA VIDA

 

 

 

Ó cidades do Eufrates!

Ó vielas de Palmira!

Ó bosques de colunas no plaino do deserto!

Que é de vós?

Enquanto passáveis as fronteiras

Dos que respiram,

Os valores de fumo dos deuses

Tiraram-vos as coroas,

Tirou-vo-las o fogo;

Eis-me agora sentado sob nuvens

(Cada uma delas com seu próprio repouso),

Sob carvalhos bem orneados,

Sobre a charneca da corça, e estranhos

Me parecem e mortos

Os espíritos dos bem-aventurados.

 

 

 


 

 

 

MAS HÁ INDA UMA COISA A DIZER …

 

 

 

Mas há inda uma coisa

A dizer. Pois quasi me vinha

Repentina de mais

A solitária

Ventura, que eu, irreflectido

Na posse, me ia

Voltando já para as sombras.

Pois porque tu deste

Aos mortais

Figura divina, a tentar,

Para quê palavras? e a melancolia

Quasi me ia tirando

Dos lábios o canto. É verdade

Que outrora os poetas

Contaram, sozinhos, como eles

Tiraram a força dos deuses.

Nós porém arrancamos

À desdita as bandeiras e dependuramo-las como troféus

Ao deus da vitória libertador. Por isso também

Mandaste mistérios. Sagrados eles são,

Resplandecentes; mas quando os celestes

Se querem fazer quotidianos

E o milagre vulgar, quando

Príncipes de Titãs agarram como roubo

As dádivas da Mãe, vem um mais alto ajudá-la.

 

 

 


 

 

 

SOBRE A LÍNGUA

 

 

— — — — — — — — — — — —

Tu falaste à divindade,

Mas todos vós esquecestes que sempre os primogénitos, não aos mortais,

Mas aos deuses pertencem.

O fruto tem de fazer-se primeiro mais vulgar

E mais quotidiano, e então só é que ele

Cabe aos mortais.

 

 

 


 

 

 

NOVO MUNDO

 

 

— — —   e pende, abóbada de bronze, o céu sobre nós, maldição

tolhe os membros dos homens, e os dons prazenteiros da terra

são como moinha, escarneceu de nós, com seus presentes, a Mãe

e tudo é aparência –

 

Mas já se abre

A torrente sobre o deserto

 

Mas onde está ele?

que venha invocar o espírito vivo.

 

 

 


 

 

 

A ROSA

 

 

Suave irmã!

Onde irei buscar, quando for inverno,

As flores, para tecer coroas aos deuses?

Então será, como se eu já não soubera do Divino,

Pois de mim terá partido o espírito da vida;

Quando eu buscar prendas de amor aos deuses,

As flores no campo escalvado,

E te não achar.

 

 

 


 

 

 

METADE DA VIDA

 

 

Com pêras douradas pende

E cheia de rosas bravas

A terra por sobre o lago,

Ó amados cisnes,

E ébrios de beijos

Mergulhais a cabeça

Na água santa e casta.

Ai de mim, onde irei buscar, quando

For inverno, as flores, e onde

O brilho do sol

E sombras da terra?

Erguem-se os muros

Mudos e frios, ao vento

Estralejam as bandeiras.

 

 

 


 

 

 

O MAIS IMEDIATO

 

 

— — — — abertas as janelas ao céu

E liberto o espírito da noite,

O assaltante do céu, que enganou

A nossa terra, com muitas línguas destravadas, e

Revolveu o lixo

Até agora.

Mas há-de vir o que eu quero,

Quando — — — —

 

 

 


 

 

 

COLHEITA

 

 

Maduros estão, mergulhados em fogo, cozidos

Os frutos e provados na Terra, e é uma lei

Que tudo entre neles, como cobras,

Profeticamente, sonhando

Nas colinas do céu. E muitas coisas,

Como sobre os ombros

Uma carga de achas,

Há a guardar. Porém maus são

Os caminhos. Pois de través,

Como cavalos, vão os elementos

Cativos e as velhas

Leis da Terra. E sempre

Há uma saudade para o liberto. Mas muitas coisas

Há a guardar. E é necessária a fidelidade.

Mas para a frente e para trás não queremos

Nós ver. Deixar-nos embalar, como

Em batel frágil sobre o mar.

 

 

 


 

 

 

OS TITÃS

 

 

— — — — — —

— — — — — —

— — — —  em horas festivas,

E que eu possa repousar, pra me lembrar

Dos mortos. Morreram muitos

Generais em velhos tempos

E mulheres belas e poetas;

E em novos

Muitos dos homens.

Mas eu estou só.

— — — — — — —

— — — — — — —

— — — —  e navegando para o oceano

Preguntar às ilhas odorosas:

Para onde foram eles?

Pois muitas coisas sobre eles

Ficaram em fiéis escrituras

E muitas em lendas do tempo.

Muito revela o deus.

Pois há longo tempo actuam já

As nuvens sobre a terra,

E o ermo sagrado cria raízes preparando muito.

Cálida é a riqueza. Pois falta

O canto, que liberta o espírito.

Devorar-se-ia

E seria a si mesmo contrário,

Pois já não sofre

Cativeiro o fogo celeste.

Mas dá alegria

O banquete, ou quando na festa

O olhar brilha, e de pérolas

O colo da virgem.

Também jogo de guerra

— — — — — — — — —

— — — — —  e pelas veredas

Dos jardins clangora

A memória da batalha e suaviza-se

Junto ao peito esbelto.

As armas sonoras repousam

Dos pais heróicos aos filhos.

Mas a mim cerca-me o zumbido

Da abelha, e, onde o lavrador

Abre os regos, cantam para a luz

Os pássaros. Muitos ajudam

Ao céu. A estes vê-os

O poeta. É bom poder suster-se

A outros. Pois ninguém suporta a vida sozinho.

Mas quando se acende

O dia laborioso,

E na cadeia,

Que desvia o raio,

Desde a hora do nascer-do-sol

Brilha o orvalho celeste,

Deve entre os mortais sentir-se

Também o que é alto.

Por isso eles constroem casas,

E a oficina trabalha,

E o navio cruza os rios,

E os homens se oferecem

Em permuta as mãos; faz sentido

Estar na terra e não é em vão

Que os olhos se cravam no solo.

Mas sente-o

Também outra raça.

Pois na medida

É preciso também o brutal,

Para que o puro se reconheça.

Mas quando — — — — — — — —

— — — — — — — — — — — — — —

E lança a mão às funduras,

Para as vivificar,

O que tudo abala, crêem eles

Que o divino desce

Até aos mortos, e poderosamente alvorece

No abismo ilimitado

Que tudo percebe.

Mas eu não quisera dizer

Que os divinos se fazem fracos

Se bem que já tudo ferva.

Mas quando — — — — — — — — —

— — — — — — — — — — e sobe

Até aos cumes do Pai, que

— — — — — — — — — — — — —

— — — — —  e o pássaro do céu

Lho anuncia. Maravilhoso

Em sua ira vem ele logo.

 

 

 


 

 

 

O Verão estava a acabar

Sunday, December 16th, 2018

 

 

Mensageiro da promessa
extraviada, os olhos
do mais indeciso azul
que conheci. Alguma vez
hei-de traçar por extenso
a curva do descaminho.

 

Foi talvez aquele beijo
a meia praça ou o acaso
de fumares tabaco negro.
Por dentro das ruas
quietas, o eco de uma voz
que mal se ouvia:

 

estamos todos tão sós
em toda a parte

 

e é quase dia.

 

 

 

Aberto ao acaso: Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras [trad. de Manuel Seabra], Arcádia, Lisboa, s/d, p. 126.

 

 

Oráculos de Cabeceira, Rui Pires Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Vento

Thursday, November 29th, 2018

 

 

 

Porque não há nada em vez de tudo? – perguntou
o cientista. – Tudo me cansa:
a tentativa, o esforço, o consegui-lo.
Tudo é redondamente inútil:
o desejo, o seu decesso.
O confronto de ideias então
apavora-me. Até mesmo a ideia de
começar a falar,
a indústria de se ganhar algo, o movimento
são desgastantes antes de si.
Tudo é absolutamente a mesma coisa.
Nada conquista nada.
O vento é.

 

 

Daniel Jonas

 

 

 

 

 

 

Oread

Sunday, October 21st, 2018

 

 

 

 

 

Whirl up, sea—
whirl your pointed pines,
splash your great pines
on our rocks,
hurl your green over us,
cover us with your pools of fir.

 

 

 

H.D. Imagiste

 

 

 

 

 

 

 

Contrariedades

Wednesday, September 26th, 2018

 

 

 

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas…

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos…

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia…
Que mundo! Coitadinha!

 

 

 

Cesário Verde

 

 

 

 

 

À porta do café

Monday, August 27th, 2018

 

 

 

Disseram alguma coisa ao meu lado
que me fixou à porta do café,
e então eu vi aquele belo corpo, que me pareceu
ter sido criado pelo engenho do próprio Eros,
moldando alegremente cada um dos seus membros,
erigindo a sua alta estatura,
esculpindo com brandura o seu rosto,
e deixando, com um toque dos seus dedos,
uma sensação subtil na testa, nos olhos, nos lábios.

 

 

K. Kavafis

 

 

 

 

 

 

 

Humilhações

Thursday, July 26th, 2018

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia
De vê-la aproximar, sentado na platéia,
De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.

Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?…

 

 

 

 

Cesário Verde