Archive for August, 2018

À porta do café

Monday, August 27th, 2018

 

 

 

Disseram alguma coisa ao meu lado
que me fixou à porta do café,
e então eu vi aquele belo corpo, que me pareceu
ter sido criado pelo engenho do próprio Eros,
moldando alegremente cada um dos seus membros,
erigindo a sua alta estatura,
esculpindo com brandura o seu rosto,
e deixando, com um toque dos seus dedos,
uma sensação subtil na testa, nos olhos, nos lábios.

 

 

K. Kavafis

 

 

 

 

 

 

 

Dois pequenos textos sobre cinema

Thursday, August 2nd, 2018

 

 

A cor no cinema

Poderá a cor alguma vez substituir as inumeráveis degradações do preto e branco?

Elio Vittorini – Novembro de 1936

 

 

 

***

 

 

Vredens Dag (Carl Th. Dreyer)

Dia de Cólera (1943)

 

Vi em Paris Vredens Dag, seis ou sete anos depois de ter visto, já sem saber onde, Vampyr, e onze ou doze depois da Jeanne d’Arc. Vredens Dag deu-me (ou terá confirmado-me) a impressão de que Dreyer, através dos seus filmes, se transforma em «inventor» do absoluto, no mesmo sentido de Chaplin, e não unicamente em «organizador» (como um Pabst, um Clair…) e que o seu esforço de invenção chega a tocar um ponto que representaria uma conquista nesta busca comum da verdade na qual os poetas e os artistas se encontram com os pensadores e são eles próprios pensadores (mesmo que não seja explícito…).

Surpreendeu-me sobretudo a primeira parte, na qual se desenvolve e conclui a tragédia da velha bruxa. Vejo, num plano quase isolado, uma tragédia ainda dos nossos dias. Temos essa velha bruxa e todos esses homens que a perseguem para fazer justiça. Tanto uma como os outros estão a tal ponto cegos pela obscuridade que os envolve (a história, a cultura, o grau de consciência e de verdade aos quais pertencem) que são incapazes de se julgar reciprocamente.

 

Os processos das bruxas

Este conflito de cegueira duplicada parece-me que contem em si a sugestão de toda a tragédia que possa ter lugar entre os homens, não no plano passional onde sempre se encontram relativas falhas e relativas razões, mas antes ao nível dos esforços com o objectivo de alcançar o conhecimento, a tomar consciência. Com efeito, o que dá a esse conflito a nuance verdadeiramente trágica é que é preciso ainda o nosso juízo de homens historicamente «menos cegos» do que essa velha e esses eclesiásticos para chegar a desvendá-lo. O horror nasce da nossa capacidade de ver atrás de nós, como Dreyer a faz despertar. Em vez de ilustrar o horror de uma certa situação ou de um certo momento histórico (seja também numa analogia com a situação dos nossos dias, como  acontece com tanto teatro e literatura moderna) a obra produz um horror no nosso tempo, na nossa condição actual, na nossa ideia actual de consciência. Não podemos (acima de tudo) olhar para trás de nós? O nosso juízo não nos serve (não pode mais servir-nos) para nós próprios?

 

 

 

 

 

Elio Vittorini

 

Il Politecnico, n. 39

Diario in Pubblico