Archive for the ‘General’ Category

O-Culto

Friday, January 12th, 2018

 

António Reis ocupa – talvez o seu súbito falecimento possibilite a tão esperada difusão dos filmes que realizou, mas em nada modifica a originalidade da sua postura, por isso faço questão de escrever no presente: os seus filmes permanecem actuais, exemplares como, a outro nível, os de Manoel de Oliveira, tanto mais que não têm sido imitados (a influência que o malogrado cineasta exerceu ou venha a exercer não permite de todo em todo que se fale de «escola») – um lugar absolutamente particular no cinema nacional na medida em que dinamitou os quadros estreitos do cinema documental ao qual se dedicou, introduzindo a ficção como modo de apreensão do real portador de história, de sonho, etc.; na medida também em que conseguiu manter-se fora dos quadros institucionais de produção (em especial do IPC), substituindo as limitações financeiras pelas relações afectivas – sempre intensas, donde uma situação marginal de constantes rupturas -; por último, na medida em que a sua obra continua a ser desconhecida do grande público, conhecida e reconhecida pelos meios cinematográficos de tal forma que os filmes engendraram um certo culto mas não suscitaram um verdadeiro discurso crítico.

António Reis, vindo da poesia e do militantismo político, transpôs as suas opções para a prática do cinema, conservando o mesmo grau de radicalismo: rodagens longe da capital, actores amadores, etc. Essas escolhas estão bem patentes no resultado: importância dada aos objectos, teatralidade assumida da representação – ficção não se disfarça -, imagens duma miséria que nunca é magnificada ou exaltada, duma natureza que não oferece nenhuma protecção e contra a qual os homens são obrigados a lutar quotidianamente sem que esse combate seja destruidor pois reconhecem a sua força telúrica e a sua beleza. O fascínio por uma natureza simultaneamente hostil e matricial já aparecia em JAIME – os lobos – e desenvolve-se nas longas-metragens, tendendo contudo a reduzir-se às paisagens, enquanto que o discurso verbal vai suplantando aos poucos aquilo que as imagens deixaram de denotar. Da história de JAIME, fechado na sua solidão, à ROSA DE AREIA, em que a história da humanidade é metaforicamente reduzida à necessidade de sobreviver ao desaparecimento do sol patriarca, António Reis conta sempre a mesma história de crianças abandonadas, mas alargando o sentido dessa ficção de filme para filme, dum homem para uma região, duma região para a humanidade inteira. E, no decorrer da sua obra, surge uma personagem nova que assegura, numa relação harmónica com a natureza, a sobrevivência: a mulher; é ANA como uma espécie de resposta à partida do pai emigrante de TRÁS-OS-MONTES, e ROSA DE AREIA em que as mulheres vêem reconhecido o seu labor e o seu sofrimento ao longo da história, votadas a evitar que os empreendimentos dos homens desaguem no holocausto definitivo, da expulsão do paraíso às modernas centrais nucleares. Isto é, as palavras, e mesmo as imagens, foram-se feminizando, para não dizer, grosseiramente, que o verbo deslizou do olhar poético para a visão feminista. Paralelamente, a encenação hieratizou-se, desligando-se do real filmado: a atitude que consistia em captar, por vezes decerto intuitivamente, uma força, uma luz que emanava dos próprios objectos e lugares, deu lugar, neste último filme, a uma certa construção em que a força é confiada ao discurso verbal – que assume a carga poética e metafórica – e à acção simbólica encenada, enquanto que os objectos e os lugares emprestam a sua beleza cenográfica sem determinarem o sentido das imagens. Em TRÁS-OS-MONTES, Reis dava provas duma singular capacidade de submeter as imagens ao «génio» dos lugares – a visita à casa senhorial, o conselho reunido no Domus de Bragança – às vezes em detrimento da sua perfeição formal, mas podendo – talvez por acaso, porém o talento poético e a modernidade do autor residem precisamente no facto de ter sabido conservar e colocar essas imagens – atingir o sublime: é o caso do plano final no qual se adivinha o comboio (da História?) que passa ao longe sem parar… Em ROSA DE AREIA, a composição dos planos parece mais dominada, mas concebida ao estrito nível intelectual e, por conseguinte, menos inovadora – i.e. inspirada em modelos pictóricos sobejamente conhecidos. Em contrapartida, a descontinuidade da montagem, que já se anunciava em TRÁS-OS-MONTES, fixa-se como princípio estruturador em ROSA DE AREIA; as cenas sucedem-se sem lugar outro que não o do discurso verbal; paradoxalmente, cada cena obedece a uma alternância tradicional de plano geral e grande planos ou até de campo / contracampo (o saborear do vinho sacrificial na presença do pai solar). Vista de fora, esta evolução parece-nos corresponder a uma influência, directa ou indirecta, mas crescente de Margarida Cordeiro, psiquiatra, esposa e co-realizadora de todas as longas-metragens. Todavia, para além do juízo crítico sobre os seus filmes, a lição de António Reis é acima de tudo a duma posição independente, assumida até às consequências de ocultação da obra. Reis, que à saída do Conservatório, pelas leitarias do Bairro Alto, de bom grado tomava atitudes paternais perante os jovens ou futuros cineastas, morreu e deixou-nos a braços com a angustiante situação arquetípica encenada nos seus filmes: a necessidade de ultrapassar o tempo e a morte, de prosseguir uma busca errante sem seguir as pegadas do pai desaparecido.

 

 

Saguenail

 

Revista A Grande Ilusão, n.º 13/14, págs. 13-14, Outubro de 1991 a Maio de 1992, Edições Afrontamento, Porto, 1992

 

 

 

 

 

 

Cinco Sonetos

Monday, November 13th, 2017

 
 
 

Se estás a chegar, a ir-te embora
estende tuas mãos com as flores
fica o perfume na minha camisola.
 
As raízes vindo sob a areia
ocultas do sol buscando a água
abrem-se distantes da semente
em lugares de luz, aí bate o vento.
 
Outra árvore faz agora a sombra
onde nos sentámos rosto a rosto
as mãos presas nas sedas da camisa.
 
O velho cacto voltou a rebentar
no tronco seco já sem os espinhos
um pequeno punho humedecido
em breve abrirá noutra flor.

 

 

 

 

 

 

O ar fendido pela borboleta
quimérica e nocturna e de cor azul.

 
O pólen do voo tomba no rumor
das achas da lareira amortecida.
Vejo os teus olhos vindo para os meus
com a água da paz de termos visto
o mesmo arco de vida atravessar
o lugar onde estávamos sozinhos.
 
O actor voltará para o escuro
das larvas e da terra apodrecida.
 
No chão de brisas de poeira
o tumulto do mundo é um luar
sombrio e essa dor serena
leva de nós todas as dores.

 

 

 

 

 

 

Quero ouvir neste fim de tarde
o vento matinal daquelas folhas
na marítima varanda aonde abri
duas cadeiras de lona cor de malva.
 
O frio do crepúsculo, os pássaros
sem rota nas faúlhas das queimadas,
as sarrentas plantas dos beirais,
as crucificadas flores dos agaves.
 
O cão negro veio dos arbustos
com um pau de musgo para nós.
As borras do café nas chávenas pesavam
sobre as folhas prestes a voar.
 
Esse vento na pedra da janela
regressa como volta um morto.

 

 

 

 

 

 

Os mapas do fumo contra o sol.
Na casa vazia ardiam as viagens.
Os corpos encontrados repousavam.
Um madeiro preso nas marés.
 
O outro vindo de tão longe
para nesta praia de detritos.
A fonte bate nos rochedos.
 
Perigos e medos como nós de palha.
Essa torre arde, é um farol
na névoa de sangue. Sou eu.
 
Estou em casa. Já saí.
O meu corpo descobre no teu corpo
o perecível inimigo da ruína.
 
Erguem-se em precipício as teias.

 

 

 

 

 

 

A água desta rocha despediu-se
do saibroso vento do verão.
As asas da calhandra rasgam
o torvo silêncio do outono.
Um charco de torrões vermelhos
vibra atravessado de girinos.
As cigarras cravadas nos estrumes
amortalham-se na luz da neblina.
 
Abro a cancela do quintal.
Pela lama das folhas dos plátanos
atravesso o pátio que já foi
jardim e lago e quase floresta
e regresso à casa arruinada.
O sorriso a crescer das cinzas.

 

 

 

 

 

 

Joaquim Manuel Magalhães

 

 

 

 

 

 

Uma figura luminosa

Wednesday, November 1st, 2017

 

Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do «Mudar de Vida». Pedi ajuda ao Bragança para os diálogos, mas ele não sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. O C. P. gostava de cinema, e estava no auge da fama: acabara de adaptar «As Ilhas Encantadas» do Melvile para a fita do Vilardebó. O C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha terra, o Porto, falar com o António Reis. Pouco conhecido cá em baixo, o António era uma figura muito activa na cena portuense.

Fazia trabalhos de campo, estudava a poesia popular do Alentejo e as falas dos pescadores da costa norte. Tinha sido um dos autores da «Arquitectura Popular Portuguesa», um livro muito citado pelos arquitectos da escola do Porto. Era amigo do Lixa Filgueiras, a grande autoridade sobre arquitectura naval tradicional, e planeava fazer um filme sobre o barco rabelo do Douro. L. Filgueiras seria mais tarde um personagem inesquecível num dos seus filmes de fundo. Para o Cine Clube do Porto ajudara a rodar o «Auto de Floripes», e tinha sido assistente do M. de Oliveira para o «Auto da Primavera». Estava a preparar uma tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de cultura popular.

E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras, que dizia o essencial através da experiência das coisas banais. Na cultura portuense de esquerda daquela época, o A. R. era uma figura luminosa. Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos de Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.

Com os meus complexos de meninote afortunado, fiquei rendido… E o António deu-me uma grande lição. Trabalhou nos diálogos durante seis meses, riscando e deitando fora. Cada dia mais magro, sempre em suores frios, à procura da vírgula, da pausa, da assonância secreta e expressiva. Os diálogos, arrancados a ferros, chegavam às filmagens à última hora, e não havia tempo para reflectir sobre eles. Só anos mais tarde, quando o «Mudar» se estreou comercialmente em Tóquio, é que tive oportunidade de os estudar. O trabalho de os traduzir para japonês era muito lento, e só assim pude descobrir a concisão musical, a riqueza secreta daquelas frases escritas com um ouvido infalível. Quantos diálogos haverá na nossa língua que se lhe possam comparar?

Mais tarde, quando traduzi do japonês uma série de 50 Haiku que foram publicados em álbum pela Moraes, pedi-lhe ajuda para «limpar» o texto. Não sei escrever em português, caio sempre em literatices falsas. Foi um trabalho de meses, as melhores aulas que tive na minha vida. O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos. Por influência dos haiku o António recomeçou a escrever poesia, lembro-me de ele me recitar um quase haiku belíssimo, uma cena de matança. Era sobre a neve a cair no prato, onde coalhava o sangue do porco. Onde estará este poema? Havia outro, misterioso, dedicado a um olmo. Perdido também? Começou a estudar chinês, apaixonou-se pelo Tufu, de quem eu lhe emprestei uma edição bilingue, comentada. Acabou por pôr o nome de Tufu a um grande mocho que vivia lá por casa em liberdade. O poeta chinês deve ter ficado encantado, lá no assento etéreo.

Cinema profissional em Lisboa

Quando o C.P.C. se criou em Lisboa o António veio trabalhar para a Guérin em Lisboa, decidido a tentar a sua sorte no cinema profissional, onde ele não conhecia ninguém. A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projecto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.

Quando veio o 25 de Abril o C.P.C. estremeceu. Os sócios acabaram por formar cooperativas independentes, já não precisavam do apoio de um órgão unitário coeso. Eu aproveitei a confusão para lançar o «Trás-os-Montes» como um projecto piloto de um futuro Museu da Imagem e do Som, um título populista grato ao poder revolucionário, e que eu tinha trazido do Rio de Janeiro. Lembro-me das salas vazias do centro, enquanto que os meus colegas andavam pelas ruas a filmar.

Eu e o António Reis ficámos sozinhos na sede a preparar os dossiers, a apresentar o museu e a pedir o dinheiro, que acabou por vir. Quase todas as fitas revolucionárias estão hoje esquecidas, mas o filme do António e da Margarida foi uma obra-prima que lhes deu fama europeia. Quando o filme estreou em Paris, no Le Monde saiu uma ordem terrorista assinada pelo Joris Ivens e pelo Jean Rouch, os dois mestres supremos do cinema documental: «Allez voir, toutes affaires cessantes, “Trás-os-Montes“!».

Durante dez anos o casal foi o ai-Jesus de uma certa crítica de vanguarda. A Kristeva correspondia-se com o António, e as pessoas que o encontravam nos festivais lá fora falavam dele mais tarde com a voz a tremer como se tivessem encontrado um profeta. Para esta aura ajudava o estranho magnetismo do António, e o trabalho incansável do António Pedro de Vasconcelos, que foi, à sua custa, e durante anos e anos, o melhor dos embaixadores do nosso cinema.

Já não acompanhei tão de perto a «Ana» e a «Rosa de Areia», filmes de que o Fernando Lopes poderá falar muito melhor do que eu. Nos últimos anos, com o novo-riquismo cavaquista, o ambiente era já muito desfavorável para os filmes de «poesia». O António deixou de ter apoio no I.P.C., e a «Rosa de Areia», produzida pela RTP, está ainda por estrear. O António passou por um período de solidão e de desânimo. Recentemente tinha sucedido um milagre. Um produtor suíço tinha-se apaixonado pelos seus filmes, e queria financiar o seu próximo projecto, uma adaptação de «Pedro Páramo», o maior dos romances mexicanos deste século. Era um projecto ambicioso, a filmar lá fora, com grandes meios… O António aparecia na escola de cinema contentíssimo, com uma alma nova. É um filme que nunca veremos, não me consigo conformar.

 

 

 

Paulo Rocha

 

Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991

 

 

 

 

 

 

 

América, Relações de Classes

Monday, February 27th, 2017

 

 

Klassenverhältnisse

 

 

Alemanha

1984

126 min

 

 

 

Filmado num magnífico preto e branco e estreado no Festival de Berlim, Klassenverhältnisse (“relações de classes e não luta de classes”, frisava Danièle Huillet) transpõe América, de Kafka. Trata-se de um dos filmes mais acessíveis da dupla de realizadores e foi inteiramente rodado na Alemanha (exceto um plano do rio Missouri) “porque no livro as relações entre as pessoas são muito mais alemãs que americanas”.

Klassenverhältnisse é um filme do deslocamento, do desenraizamento, num mundo “onde não há absolutamente justiça. Para nós, Kafka é o único grande poeta da civilização industrial, ou seja, de uma civilização na qual as pessoas dependem do trabalho para sobreviver”.

 

 

 

 

 

 

Da Nuvem à Resistência

Monday, February 27th, 2017

Dalla nube alla resistenza

 

 

Alemanha

1978-79

105 min

 

 

 

Toda a revolução é um lance de dados

Monday, February 27th, 2017

Toute révolution est un coup de dés

 

França

1977

11 min

 

 

 

 

O Noivo, a Actriz e o Proxeneta

Monday, February 27th, 2017

Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter

 

Alemanha

1968

23 min

 

 

Straub faz a primeira das muitas “misturas” (o termo é dele) da sua obra: os ensaios de uma peça de Ferdinand Brückner, pela companhia de Fassbinder, são mostrados em paralelo com a ligação sentimental entre uma prostituta e um negro, naquele que talvez seja o filme mais comovente de toda a sua obra.