Aqueles que acreditam que os cristãos se conseguirão adaptar mais cedo ou mais tarde ao mundo moderno ignoram um facto avassalador para o espírito: o mundo moderno é essencialmente um mundo sem liberdade. Não há espaço para liberdade na gigantesca fábrica mecânica que deveria ser regulada como um relógio. Para ficar convencido disto, basta considerar a experiência da guerra.

A liberdade é um luxo que uma comunidade não pode pagar quando se propõe a comprometer todos os seus recursos para obter o máximo retorno. Uma colectividade livre, no mundo moderno, está em estado de inferioridade em relação a outra, e essa inferioridade é tanto mais séria quanto mais livre a comunidade. Imagine-se que, em vez de produzir máquinas em números surpreendentes, o mundo moderno se voltava para obras de arte desinteressadas, para a projecção de cidades harmoniosas, para a construção de palácios e catedrais.. seria, pelo contrário, indispensável formar um tipo de homem livre … O mundo moderno não reconhece outra regra senão a eficiência.

É por esta razão que as próprias democracias têm apanhado o seu material humano na teia de uma fiscalidade impiedosa. Em nome dessa fiscalidade, vão fortalecendo hipocritamente o poder do Estado a cada dia. Os ditadores receberam a liberdade dos cidadãos ou, se necessário, tomaram-na à força. A atitude das democracias faz lembrar a do usurário judeu que, na velha Rússia, sendo também o dono de taberna, fazia o mujique assinar, a cada embriaguez, um pequeno reconhecimento de dívida, com juros. Um belo dia, o mujique soube que as suas terras, o seu gado, a sua casa e até mesmo o touloup de pele de carneiro que trazia às costas pertenciam ao seu benfeitor. O equivalente à embriaguez, para o cidadão das democracias, é a guerra. A cada guerra pela liberdade, levam-nos 25% das liberdades que restavam. Quando as democracias decidirem fazer a liberdade realmente triunfar no mundo, pergunto-me o que vai sobrar dela para nós…

A civilização das máquinas não poderia ser concebida sem um material humano sempre disponível. O problema da justiça social está intimamente ligado ao da constituição do material humano; é por isso que as democracias, como os ditadores, estão tão interessadas nele. O material humano deve ser mantido de forma adequada, assim como qualquer material, mas a liberdade, longe de favorecer o seu desempenho, apenas o diminuiria em quantidade e em qualidade.

Liberdade para quê? A quem poderá ela servir no mundo das máquinas? Além disso, apenas se poderá tornar mais e mais perigosa. À medida que as máquinas se multiplicam e aumentam desmedidamente a sua força, a mínima sabotagem pode ter consequências incalculáveis. No dia em que um novo milagre da tecnologia permitir a qualquer físico fabricar no seu laboratório alguns materiais facilmente desintegráveis, colocando assim a destruição de uma cidade inteira à mercê do primeiro que chegar, penso que os efectivos da polícia incluirão nove décimos da população, e que um cidadão não poderá mais atravessar a rua de um passeio para outro sem baixar duas vezes as calças à frente de um guarda ansioso para garantir que ele não leva consigo nenhum miligrama da preciosa matéria.

[…]

Se me perguntarem qual é o sintoma mais geral desta anemia do espírito, certamente responderei: a indiferença à verdade e à mentira. Nos nossos dias, a propaganda prova o que quer, e aceitamos mais ou menos passivamente o que ela oferece. Oh! Sem dúvida, esta indiferença esconde antes um cansaço, e como um nojo da faculdade de julgar. Mas a faculdade de julgamento não pode ser exercida sem um certo compromisso interior. Quem julga compromete-se. O homem moderno não se compromete mais, porque não tem mais nada a comprometer. Chamado para o lado verdadeiro ou falso, mau ou bom, o homem cristão comprometia ao mesmo tempo a sua alma, isto é, arriscava a sua salvação. A crença metafísica era para ele uma fonte inesgotável de energia. O homem moderno é sempre capaz de julgar, porque é sempre capaz de raciocinar. Mas a sua faculdade de julgar não funciona mais do que um motor sem combustível. Não falta nenhuma peça ao motor. Mas não há gasolina no tanque.

Para muitas pessoas, esta indiferença à verdade e à mentira parece mais cómica do que trágica. Quanto a mim, considero-a trágica. Ela implica uma terrível disponibilidade não apenas do espírito, mas da pessoa inteira, e até mesmo da pessoa física. Qualquer um que esteja indiferentemente aberto tanto ao verdadeiro como ao falso está pronto para qualquer tirania.

 

 

 

 

excerto de La liberté pour quoi faire ?

Essais et écrits de combat

 

Georges Bernanos

 

 

 

 

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