18 de Março – 1900

 

Faz hoje anos que morreu António Nobre. Foi uma figura inconfundível de poeta. Por mim nunca encontrei também rapaz mais lindo. Um pouco afectado talvez… Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus versos no jardim solitário do Palácio, e pedia, com os olhos límpidos e sôfregos, uma Bíblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão… Estou a vê-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela janela da casa à beira rio, de Matosinhos, onde Alberto d’Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto d’Oliveira, esperto e tão dominador, que, quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo… António Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdém. Fugiam dele antes de publicar o ; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o . Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para cônsul quiseram reprová-lo: foi preciso que Alberto d’Oliveira explicasse ao júri quem era o poeta António Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e até os seus amigos mais íntimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha vivido — só. Até Alberto d’Oliveira teve de interromper uma amizade de irmão quando se encontrou diante deste dilema: ou deixar-se dominar por ele, que o tratava como uma criança, ou feri-lo em pleno coração: — A nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou três pontos à craveira. Ou mantê-la ou quebrá-la. — Quebrou-a. O ilustre escritor possui desse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de António Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só ele pode e deve escrever.

 

Digamo-lo, digamo-lo… No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe puderam perdoar a impertinência, o desdém, o génio. Era um ser diferente. Não agradava a ninguém. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida prática. Tinha a consciência do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar. Estávamos todos mortos por nos desfazermos desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo — que nos ficou na alma …

 

Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdém infantil de António Nobre.

 

Foi para a cova completar trinta e três anos num dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um príncipe e adorável como uma criança. Quantos estavam ali à beira do túmulo? Meia dúzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu — e quem mais? quantos mais? Os jornais deram a sua morte em duas rápidas linhas. Respirou-se.

 

Hoje é um dos poetas portugueses com mais admiradores. É um poeta de simpatia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida prática. Ao contrário, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si próprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes, árvores, estrelas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu de uma forma tão sua o universo. Que universo dirás? O meu? o teu?… Não, o que ele descobriu, cismando como um navegador, à proa do seu barco… Por isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no sepulcro.

 

 

 

 

Raúl Brandão

Memórias

 

 

 

 

 

 

 

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