(ou, transigindo,

de que lado

passarás a morrer, a clarear)?

 

 

 

 

resiste à anunciação da tua morte, ao tempo devolvido, aos muros brancos com a sombra das oliveiras desenhada, resiste ao portão que abre para jarras de vidro lascado, onde a água apodrece, e para flores pisadas entre túmulos, resiste com a tua mudez a todas as perguntas, a todos os inquéritos, resiste à beleza que só prolonga um equívoco, ao que não interrompe, resiste ao cuspo, o suor, a merda, a flacidez, as rugas, resiste à eternidade dos que estão sempre a esconder-te atrás das marcas de deus, da humanidade, do próximo, esse substantivo abstracto, e ri dos dejectos que a eternidade vai largando: as moscas e os besouros encarregar-se-ão deles, e depois o pó no que há-de restar, mas a merda continua merda, não se transfigura, a merda resiste, nos palhaços que mastigam uma boca vazia, explode, isto é, cada pedaço do teu corpo incendeia, isso torna-te invulnerável, ninguém te dará nada nem te perguntará nada. porque não percebem, afinal o fogo são muitos caminhos, alguns o rasto de um escorpião numa duna, outros o contínuo remexer das gaivotas na estrumeira, outros ainda, um riso estridente. O medo é um cerco de vespas, que zumbem em lugares inesperados, ou um lobo que nunca abandona, hoje há coisas simples nos subúrbios das grandes cidades: a carcaça de autocarros calcinados, um homem barricado num café, uma criança afogada na piscina: eis os dejectos da eternidade, nos hemiciclos homens cheios de certezas falam e comem o que falam, vomitam e comem o que vomitam. De madrugada, os camiões levam o lixo. São grandes lixeiras estas palavras: paneleiro, paneleiro. Resiste. Não transfigures, não emendes com frases as palavras que doem, elas reconhecerão sempre o alvo.

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Portugueses, riso, portuguesas, riso, a conclusão do programa de ajustamento, riso, foi feita, riso, com sucesso, riso, o objectivo fulcral, riso, do ano, riso, o orçamento do estado é, riso, um instrumento, riso, um instrumento de merda, riso, o meu instrumento, riso, o de todos nós, riso, o acesso aos mercados, riso, abre e fecha a boca, riso, a bandeira atrás, riso, a primeira dama, riso, com hífen ou sem hífen, riso, a boca que se abre e fecha, riso, abre-se e fecha-se um grande silêncio, riso, escurece o ecrã, riso, desaparece o homem, riso, reaparece o homem, riso, a mulher atrás, riso, e ele à frente, riso, atravessam uma sala, riso, a, riso, traves, riso, sam, riso, u, riso, m, riso, a, riso, s, riso, a, riso, l, riso, a, riso, cá vivo e sam sou, este bolo está bom.
– choco. És um choco podre.

 

Os miúdos gritam de longe:
– paneleiro, paneleiro.
O seu afastamento sufoca. O sol bate-te nas costas. O suor escorre como uma raiz a crescer. Ramifica-se. A touca vermelha na cabeça: atravessa-a uma lista branca.

 

A história acabou ali. O resto é só um caminho para o príncipio: a tua morte. Ou mais longe ainda: uma cidade que irias percorrer, que o teu olhar esvaziava de outro olhar. E por todo o lado quem sempre te vira, via-te. Atrás das janelas, por entre as cortinas, ou sentados nas tabernas, ou: não o conheço, ou: boa noite Tonito, ou mudavam de passeio, ou o riso dos pescadores que consertavam as redes: olha o gajo à procura de homem, aquela vergonha, antes ladrão que paneleiro. Há tantos anos. Ou desde sempre. Um lugar cercado: seria o teu. Um lugar aguarda o homem que lhe dará o cerco. A mágoa. A mácula. A mancha. Não a mancha: o borrão.
Paneleiro, paneleiro.

 

O eco: voz que saiu da voz. E assim. Ninguém.

 

 

 

 

Rui Nunes

(ou, transigindo,
de que lado
passarás a morrer, a clarear)?

Língua Morta, 2014

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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